segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Vós crédulos mortais, alucinados - Bocage

 LXV

Vós crédulos mortais, alucinados
De sonhos, de quimeras, de aparências,
Colheis por uso erradas conseqüencias
Dos acontecimentos desastrados:

Se à perdição correis precipitados
Por cegas, por fogosas impaciências,
Indo cair, gritais que são violências
D(e) inexoráveis céus, de negros fados:

Se um celeste poder, tirano e duro,
Às vezes extorquisse as liberdades,
Que prestava, ó Razão, teu lume puro?

Não forçam corações as divindades;
Fado amigo não há, nem fado escuro:
Fados são as paixões, são as vontades.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Sonhos - Akira Kurosawa

Este dialogo abaixo é reprodução de um capitulo do filme Sonhos de Akira Kurosawa, copiei do site Eu-Lirico. Abaixo tem o link para o video deste trecho do filme no You Tube, testei o link mas pode ser excluído por ser propriedade da Warner Bros. O capitulo começa com a chegada de um viajante em uma pequena aldeia,


Viajante – Qual o nome deste povoado?
Ancião – Não tem. Só chamamos de “O Povoado”. Alguns chamam de Povoado do Moinho.
Viajante – Todos os habitantes moram aqui?
Ancião – Não. Moram em outros lugares.
Viajante – Não há eletricidade aqui?
Ancião – Não precisamos. As pessoas acostumam-se ao conforto. Acham que o conforto é melhor. Rejeitam o que é realmente bom.
Viajante – Mas, e as luzes?
Ancião – Temos velas e óleo de linhaça.
Viajante – Mas a noite é tão escura.
Ancião – É. Assim é a noite. Por que a noite deveria ser clara como o dia? Eu não ia querer noites claras, que não deixassem ver estrelas.
Viajante – O senhor tem arrozais. Mas não tem tratores para cultivá-los?
Ancião – Não precisamos. Temos vacas, temos cavalos.
Viajante – O que usa como combustível?
Ancião – Lenha, na maioria das vezes. Não achamos direito cortar árvores, e muitos galhos caem sozinhos. Cortamos e usamos como lenha. E para carvão de madeira, poucas árvores aquecem tanto quanto uma floresta. Também estrume de vaca dá bom combustível. Gostamos de viver respeitando a natureza. As pessoas, hoje, esqueceram que são apenas parte da natureza. Mas destroem a natureza da qual dependem nossas vidas. Elas sempre acham que podem fazer melhor. Especialmente os cientistas. Podem ser inteligentes, mas não compreendem o verdadeiro significado da natureza. Só inventam coisas que tornam as pessoas infelizes. Mas têm tanto orgulho das invenções deles. Pior é que muita gente também se orgulha. Encaram-nas como milagres. Idolatram-nas. Não percebem, mas estão perdendo a natureza. E, como conseqüência, vão morrer. As coisas mais importantes para o ser humano são ar puro e água limpa, as árvores e grama que os produzem. Tudo está sendo poluído, e perdido para sempre. Ar sujo, água suja, sujando os corações dos homens.
Viajante – Vindo para cá, vi algumas crianças colocando flores em uma pedra ao lado da ponte. Por quê?
Ancião – Ah, isso. Meu pai me contou uma vez. Há muito tempo, acharam um viajante morto, perto da ponte. Os aldeões ficaram com pena e o enterraram lá. Colocaram uma pedra na tumba dele e puseram flores. Tornou-se um costume colocar flores lá. Não só as crianças. Todos os aldeões colocam flores quando passam, embora a maioria não saiba por quê.
Viajante – Há um festival hoje? (ouvindo uma festividade aproximando-se).
Ancião – Não, é um funeral. Acha estranho? Um funeral é sempre agradável. Viver bem, trabalhar bem e morrer com agradecimentos é louvável. Não temos templos nem sacerdotes aqui. Assim, os próprios aldeões levam os mortos até o cemitério da colina. Mas não gostamos quando jovens e crianças morrem. É difícil comemorar tal perda. Mas, felizmente, as pessoas deste povoado levam uma vida natural. Então, morrem de acordo com a idade. A anciã que vai ser enterrada viveu gloriosamente os 99 anos. Agora, vou unir-me ao cortejo. Com licença. Na verdade, ela foi o meu primeiro amor. Mas ela partiu meu coração e me trocou por outro. Ha! Ha! Ha! Ha! Ha!
Viajante – A propósito, quantos anos tem?
Ancião – Eu? Cem... mais três. Boa idade para parar de viver. Uns dizem que a vida é sofrimento. Isso é bobagem. Sinceramente, é bom estar vivo. É emocionante.

(O ancião dirige-se à estrada, seguido pelo viajante, para juntar-se ao cortejo festivo. Cumprimenta cordialmente o viajante e une-se aos outros aldeões em festa. O viajante assiste admirado o cortejo passar e, antes de retirar-se da aldeia, deposita flores na pedra do túmulo do viajante morto. A paisagem é indescritivelmente bela... E os moinhos, girando no ritmo da correnteza do rio, expressam o ritmo da vida).

Video

Citação - Willians Burroughs

Desça a rua, qualquer rua, gravando e fotografando tudo que você ouvir e ver. Vá então para casa e escreva a respeito de suas observações, sentimentos, associações e pensamentos. Depois compare suas anotações com as evidências fornecidas pelas fotos e fitas. Descobrirás que sua mente registrou apenas uma fração de sua vivência. O que você deixou de fora talvez seja o que você precise descobrir. A verdade pode aparecer apenas uma vez. Ela pode não ser repetida

sábado, 24 de dezembro de 2011

Um Natal Junkie - William Burroughs



Pra quem preferir baixar o filme Arapa Rock Motor e a legenda

Cólera - É Natal?!

É Natal?! Se é Natal não sei!
Os pobres ficaram bem mais pobres
Os ricos muito muito ricos
O comércio fica aberto dia e noite
Os presentes e chantagens
Todos trocam sem pensar
Para no dia seguinte se odiar
Os assaltos multiplicam
Guerras seguem sem parar
Matam animais à toa, só para treinar
Não preciso de pretexto
Não preciso de Natal
Todo dia é importante
Todo dia é igual

Link: Aurélio Net

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Misty Mountain Hop - Led Zeppelin

Walking in the park just the other day, baby
What do you, what do you think I saw?
Crowds of people sitting on the grass
With flowers in their hair said

Hey boy, do you wanna score?
And you know how it is
I really don't know what time it was, woh-oh-oh
So I asked them if I could stay awhile

I didn't notice, but it had got very dark and I was really
Really out of my mind
Just then a policeman stepped up to me and asked us said
Please, hey, would we care to all get in line, get in line

Well, you know, they asked us to stay for tea and have some fun, woh-oh-oh
He said that his friends would all drop by
Why don't you take a good look at yourself and describe what you see
And baby, baby, baby, do you like it?

There you sit, sitting spare like a book on a shelf rusting
Not trying to fight it
You really don't care if they're coming, woh-oh-oh
I know that it's all a state of mind

If you go down in the streets today, baby, you better
You better open your eyes
Folk down there really don't care, really don't care, don't care, really don't
Which, which way the pressure lies

So I've decided what I'm gonna do now
So I'm packing my bags for the Misty Mountains
Where the spirits go now
Over the hills where the spirits fly

Uh, uh, uh
Uh, uh, uh, uh
Uh, uh, uh
Uh, uh, uh, uh

I really don't know
I really don't know


Tradução

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Alcoólicas - Hilda Hilst

Alcoólicas – I
É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A Vida é líquida.
Alcoólicas – II
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
* * *
Alcoólicas – III
Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida
Alcoólicas – IV
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.
Alcoólicas – V
Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Nenhum caminho para o paraíso - Charles Bukowski

Eu estava sentado em um bar na avenida Western. Era perto da meia-noite e estava metido em uma das minhas habituais confusões. Quero dizer, você sabe, nada dá certo: as mulheres, os trabalhos, a falta de trabalhos, o tempo, os cães. Por fim, você simplesmente senta em uma espécie de estado de transe e espera como se estivesse no banco da parada de ônibus aguardando a morte.
Bem, estava sentado lá e então chega essa mulher com cabelo preto e longo, bom corpo, olhos castanhos e tristes. Não me virei para olhá-la. Ignorei-a, mesmo ela tendo sentado no banco ao lado do meu, quando havia uma duzia de outros lugares vagos. Na verdade, éramos os únicos no bar, exceto pelo balconista. Ela pediu um vinho seco. Depois me perguntou o que eu estava bebendo.
-  Scotch com água.
- Dê-lhe um scotch com água - ela disse ao balconista.
Bem, isso era incomum.
Abriu a bolsa, removeu uma pequena gaiola de arame e tirou algumas pessoas pequenas e as colocou no balcão. Tinham todos aproximadamente dez centimetros de altura e estavam vivos e bem vestidos. Havia quatro deles, dois homens e duas mulheres.
- Fazem desses agora - ela disse. - São muito caros. Custaram quase dois mil dolores cada um quando comprei. Agora estão chegando aos 2.400 dólares. Não sei como são feitos, mas provavelmente é coisa fora da lei.
As pessoas em miniatura estavam caminhando por cima do balcão. Repentinamente um dos pequenos homens deu um tapa na cara de uma das mulheres.
- Sua vagabunda - ele disse - , já chega!!
- Não George, você não pode - ela gritou -, eu te amo! Vou me matar! Tenho que ter você!
- Não me importo! - disse o pequeno sujeito e puxou um cigarrinho e o acendeu. - Tenho direito de viver.
- Se você não a quer - disse outro sujeitinho -, fico com ela, eu a amo.
- Mas eu não quero você, Marty. Estou apaixonada pelo George.
- Mas ele é um idiota, Anna, um idiota completo!
- Eu sei, mas o amo de qualquer forma.
O idiotinha caminhou pelo balcão e beijou a outra mulherzinha.

Lembrança de Morrer - Alvarez de Azevedo

Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro,
... Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minha alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade... é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade... é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai... de meus únicos amigos,
Pouco - bem poucos... e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
A minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
A sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta - sonhou - e amou na vida.

Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!

Mas quando preludia ave da aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua pratear-me a lousa!

Solitário - Augusto dos Anjos

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!


Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!


Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
— Velho caixão a carregar destroços —


Levando apenas na tumbas carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

domingo, 4 de dezembro de 2011

Sonhos do Crepúsculo - Carl Sandburg

Sonhos no crepúsculo,
Apenas sonhos encerrando o dia,
Retornando-o com tal desfecho,
Aos tons cinza, escurecidos,
Às coisas fundas e longínquas
Do território dos sonhos.

Sonhos, apenas sonhos no crepúsculo,
Apenas as rotas imagens lembradas
Dos tempos idos, quando o ocaso de cada dia
Escrevia em prantos as perdas da afeição.

Lágrimas e perdas e sonhos desfeitos
Talvez acolham teu coração
ao anoitecer.

(Dreams in the Dusk, poema de Carl Sandburg,
tradução de Fernando Campanella)

Copiei daqui: Palavreares 

domingo, 27 de novembro de 2011

Calamity Song - The Decemberists

Had a dream, you and me and the war of the end times
And I believe California succumbed to the fault line
We heaved relief as scores of innocents died

And the Andalusian tribes
Setting the lay of Nebraska alight
'Til all that remain is the arms of the angels

Hetty Green, queen of supply-side bonhomie bone-drab
Know what i mean?
On the road, it's well advised that you follow your own bag
In the year of the chewable Ambien tab

And the Panamanian child
Stands at the dowager empress' side
And all that remain is the arms of angels
And all that remain is the arms of angels

When you've recceded into loam
And they're picking at your bones
We'll come home

Quiet now, will we gather to conjure the rain down?
Will we now build a civilization below ground?
And I'll be crowned the community kick-it-around

And the Andalusian tribes
Setting the lay of Nebraska alight
'Til all that remain is the arms of the angels
'Til all that remain is the arms of the angels


Se alguém conseguir uma tradução pode me passar.

sábado, 26 de novembro de 2011

Um .45 para pagar o aluguel - Bukowski

Duke tinha essa filha, que se chamava Lala, de 4 anos. Era a primogênita, logo dele, sempre tão precavido pra evitar filhos, com medo de ser morto por um deles. Mas agora vivia louco de alegria, encantado com a menina, que adivinhava tudo o que ele pensava – tal a comunicação que havia entre ela e ele, entre ele e ela.
Duke estava no supermercado com Lala, e os dois conversavam, dizendo uma coisa e outra. Falavam a respeito de tudo e ela lhe contava tudo o que sabia, e sabia muito, instintivamente, ao passo que Duke, se por um lado pouco sabia, por outro fazia o que podia. No fim dava certo. Sentiam-se
felizes um com o outro.
– O que é aquilo ali? – pergunta ela.
– Um coco.
– O que que tem dentro?
– Um troço branco pra se mastigar.
– Por que que é por dentro?
– Porque todo esse troço branco que a gente mastiga se sente bem ali dentro, no interior da casca. E diz, consigo mesmo, “puxa, que gostoso que tá isto aqui!”.
– Por que que é gostoso?
– Porque sim. Qualquer um acharia. Eu, por exemplo.
– Não acharia, não. Não ia poder dirigir o teu carro ali dentro, nem poder me enxergar. Ou comer presunto com ovo.
– Presunto com ovo não é tudo o que existe.
– O que que é tudo que existe, então?
– Sei lá. Pode ser que seja o miolo do sol, puro gelo.
– O MIOLO do SOL...? PURO GELO?
– É.
– Como seria o miolo do sol, se fosse puro gelo?
– Ué, todo mundo pensa que o sol é aquela bola de fogo.
E tenho impressão que nenhum cientista vai concordar comigo, mas eu acho que seria assim, óh.
Duke pega um abacate.
– Oba!
– Tá vendo, um acabate é isto aqui: sol gelado. A gente come o sol e depois sai andando por aí, com uma sensação gostosa.
– O sol tá em toda aquela cerveja que tu bebe?
– Tá, sim.
– Dentro de mim também?
– Mais do que em qualquer pessoa que conheço.
– Pois eu acho que tu tem um SOL DESTE TAMANHO dentro de ti!
– Obrigado, meu bem.

Não: devagar - Alvaro de Campos

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez tudo isso...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Poema tirado de uma noticia de Jornal - Manuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Tragédia Brasileira - Manuel Bandeira

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade,

Conheceu Maria Elvira na Lapa, - prostituída, com sífilis, dermite nos dedos,
uma aliança empenhada e o dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou
médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez
nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos,
Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua
Clapp,
outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato,
Inválidos...

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de
inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em
decúbito dorsal, vestida de organdi azul. 


Sou fã de Manuel Bandeira estava faltando um poema dele aqui.

a escapada - Charles Bukowski

escapar de uma viúva negra
é um milagre tão grande quanto a própria arte.
que rede ela pode tecer
enquanto o arrasta vagarosamente em sua direção
ela irá abraçá-lo
depois, quando estiver satisfeita,
ela o matará
ainda no mesmo abraço
e lhe sugará todo o sangue.


escapei da minha viúva negra
porque ela possuía machos demais
em sua rede
e enquanto ela abraçava um deles
e depois o outro e então ainda
outro
me libertei
retornei
ao lugar onde estava anteriormente.


ela sentirá minha falta -
não de meu amor
mas do gosto do meu sangue,
mas ela é boa, ela encontrará outro
sangue;
ela é tão boa que quase sinto falta de minha morte,
mas não o suficiente;
escapei. eu vejo as outras
teias.

domingo, 30 de outubro de 2011

Querer - José Eduardo Mendes Camargo

Quero massagear o teu corpo,
Como se te prestasse um tributo de paixão.
E com minhas mãos, como que num ritual,
Percorrer-te todos os caminhos
E dele extrair a chama da combustão.
E cheirá-la por inteiro,
No ardor de farejar o âmago de tua alma fêmea.
E beijá-la voluptuosamente e com meus lábios
Sorver o suor ensandecido de teus poros
Quero, então, corpos unidos,
Dançar ao som de teus gemidos e sussurros
A dança terna e alucinante do amor.

Sossegue Coração - Paulo Leminski

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos afora

calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa

Guerra de trincheira - Charles Bukowski

abatido pela gripe
bebendo cerveja
o rádio num volume
suficientemente alto para superar
os sons produzidos
pelo estéreo das pessoas que
recém se mudaram
para casa
ao lado.
dormindo ou acordados
eles ajustam seu aparelho
no volume máximo
deixando suas
portas e janelas
abertas.

cada um deles tem
18, casados, vestem
sapatos vermelhos,
são loiros,
magros.
tocam de
tudo: jazz
música clássica, rock,
country, moderna
contanto que esteja
alta.

este é o problema
de ser pobre:
temos de conviver com
o som dos outros.
semana passada foi
minha vez:
havia duas mulheres
aqui
brigando entre si
e elas
correram pela calçada
gritando.
a polícia veio.

agora é a vez
deles.
agora caminho
pra lá e pra cá em
meus calções sujos,
dois tampões de borracha
enfiados bem fundo
em meus ouvidos.

chego a pensar em
assassinato
esses coelhos
pequenos e rudes!
pedacinhos ambulantes
de ranho!

mas na nossa terra
e do nosso jeito
nunca terá havido
uma chance;
somente quando
as coisas não estão
indo tão mal
por um instante
que esquecemos.

algum dia cada um
deles estará morto
algum dia cada um
deles terá um
caixão separado
e então haverá
silêncio.

mas por ora
é Bob Dylan
Bob Dylan Bob
Dylan por aí
afora.


domingo, 16 de outubro de 2011

Seguros - Charles Bukowski



a casa dos vizinhos me deixa
triste.
ambos marido e mulher acordam cedo e
vão ao trabalho.
chegam em casa no início da noite.
têm um pequeno menino e uma menina.
pelas 21h todas as luzes na casa
se apagam.
na manhã seguinte ambos marido e
mulher acordam cedo de novo e vão ao
trabalho.
retornam no início da noite.
pelas 21h todas as luzes se
apagam.

a casa dos vizinhos me deixa
triste.
as pessoas são boas pessoas, eu
gosto deles.

mas sinto que estão se afogando.
e não posso salvá-los.

eles sobrevivem.
eles não são
sem-teto.

mas o preço é
terrível.

às vezes durante o dia
eu olho para a casa
e a casa olha para
mim
e a casa
chora, sim, é verdade, eu
sinto isso.

a casa está triste pelas pessoas que ali
moram
e eu também
e olhamos um ao outro
e carros passam pra lá e pra cá
na rua,
barcos atravessam o porto
e as altas palmeiras cutucam
o céu
e esta noite às 21h
as luzes se apagarão,
e não somente naquela
casa
e não somente nesta
cidade.
vidas seguras se escondem,
quase
paradas,
a respiração dos
corpos e pouco
mais.


Encontrei aqui: Assim falou Zaratrusta

sábado, 15 de outubro de 2011

Rua Longa - Lawrence Ferlinghetti



A rua longa
que é a rua do mundo
passa em torno do mundo
cheia de todas as pessoas do mundo
pra não dizer todas as vozes
de todas as pessoas
que já existiram
Quem ama e quem chora
dorminhocos e virgens
vendedores de spaghetti e homens-sanduíche
oradores e leitores
desossados banqueiros
donas-de-casa criteriosas
cobertas de esnobices de náilon
desertos de publicitários
manadas de secundaristas fogosas
multidões de colegiais
falando pelos cotovelos do mundo
e andando por aí sem parar
se pendurando na primeira janela
para ver o que passa
no mundo lá fora
onde tudo acontece
mais cedo ou mais tarde
se de fato acontece mesmo
E a rua longa
que é a rua mais longa
de todo o mundo
mas não é tão longa
como parece
passa por
todas as cidades e todas as cenas
cada alameda abaixo
cada boulevard para cima
cruza cada cruzamento
com sinais vermelhos e sinais verdes
passa por cidades ao sol
continentes na chuva
Hong Kongs famintas
incultiváveis Tuscaloosas
Oaklands da alma
Dublins da imaginação
E a rua longa
rola na sua ronda
como um enorme trem que chia
ofegando em volta do mundo
com a bagunça dos passageiros
os bebês e as cestas de piquenique
os cachorros e os gatos
e todos se perguntando
quem é que está
na cabine da frente
guiando o trem
se é que lá tem mesmo alguém
o trem que corre ao redor do mundo
como um mundo que vai ficando redondo
todos ali se perguntando
que será que há
se há qualquer coisa
enquanto alguns se pendurando
espicham o olhar para a frente
tentando dar uma manjada
no maquinista na cabine
que só tem um olho
tentando ver o maquinista
divisar sua face
encontrar seu olho
quando eles passam numa curva
e jamais conseguem
embora de vez em quando pareça
que eles até já estão
para conseguir
E assim a rua vai rolando
vai o trem rebolando
estendendo nas janelas
suas lá dele as demais janelas de todos
os edifícios de
todas as ruas do mundo
deslizando também
na luz do mundo
na noite do mundo
com sinais nas travessias
fachos que estão perdidos mas focam
multidões em carnavais
circos na boca da noite
puteiros e parlamentos
fontes que o pensamento abandona
portas de porão e portas não achadas
figuras indecisas na lâmpada
ídolos que dançam pálidos
na ida continuada do mundo
Mas chegamos agora
à parte mais vazia da rua
à parte da rua
que passa em volta
da parte mais vazia do mundo
E não é aqui
que você vai
mudar de trem
Não é neste lugar
que você faz
alguma coisa
Esta é aquela parte do mundo
onde nada está fazendo
onde ninguém está fazendo
nada
onde em nenhum lugar há
alguém que não seja
apenas você
nem mesmo um espelho
que te faça em dois
nem uma alma
a não ser a sua
talvez
e mesmo assim
não aí
talvez
ou então não sua
talvez
porque você está como se diz
morto
você chegou à sua estaçãoQueira descer


de, Um parque de diversões da cabeça
Trad: Eduardo Bueno e Leonardo Froés
L&PM editores, 1984

uma mudança de hábito - Charles Bukowski

Shirley chegou a cidade com uma perna quebrada
e conheceu o chicano que fumava
longos charutos slim
e eles foram morar juntos
na Beacon Street
5º andar;
a perna não atrapalhava
muito e
eles assistiam televisão juntos
e Shirley cozinhava, de
muletas e tudo;
havia um gato, Bogey,
e eles tinham alguns amigos
e falavam sobre esportes e Richard Nixon
e de como era dificil tocar
as coisas.
funcionou por alguns meses,
Shiley se livrou até do gesso,
 e o chicano, Manuel,
conseguiu um emprego em Baltimore,
Shirley costurava todos os botões caídos
das camisas de Manuel, remendava e emparelhava as meias
dele, então
um dia Manuel retornou para casa, e
ela havia sumido -
sem discussão, sem bilhete, apenas
sumira levando todas as roupas
e pertences, e
Manuel sentou-se junto a janela e olhou para rua
e não foi ao trabalho
na manhã seguinte nem
na outra,
sequer ligou para avisar,
perdeu o emprego,
recebeu uma multa por estacionamento proibido, fumou
quatrocentos e sessenta cigarros, foi
preso por embriaguez, saiu por
fiança, foi
a julgamento e se confessou
culpado.

quando o aluguel venceu ele
se mudou de Beacon Street,
deixou o gato e foi viver com
seu irmão e
os dois enchiam a cara
todas as noites
e falavam sobre o quão
terrível
era a vida.

Manuel jamais voltou a fumar
aqueles longos charutos slim
porque Shirley sempre dizia
como
ele ficava bonito
com eles na boca.

domingo, 9 de outubro de 2011

Citação - Oscar Wilde

" A melhor forma de se livrar de uma tentação é ceder a ela "

Trecho de Nem Bobo Nem Nada de Rui Werneck de Capistrano

" - O filho mais novo pintou o cabelo de roxo! Diz que é da hora. Desse jeito vou acabar me abraçando com o diabo. E os amigos dele, cada um com uma cor. Virou viveiro de passarinho, o quintal."

" - Outro dia ajudei a mulher a levar o mais velho pra igreja. Cara, aquela rezaiada e o papo mole do pastor. Só pra levar a grana da mulherada. Não é que a do lado me deu uma olhada meio demorada? Ué, não vão lá pra afastar a tentação?"

Trechos do livro Nem Bobo Nem Nada de Rui Werneck de Capistrano o qual recomendo a todos.

sábado, 1 de outubro de 2011

Reportagem sobre a geração beat

No site da revista mundo estranho tem uma pequena reportagem sobre a geração beat. Segue o link: O que foi a Geração Beat?

Apelo - Dalton Trevisan



       Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
       Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.   
       Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.

Tem Vídeo

HaiKais - Paulo Leminski

confira
tudo que respira
conspira



passa e volta
a cada gole
uma revolta



bateu na patente
batata
tem gente



verde a árvore caída
vira amarelo
a última vez na vida



nada me demove
ainda vou ser o pai
dos irmaos karamazov



na rua
sem resistir
me chamam
torno a existir



debruçado num buraco
vendo o vazio
ir e vir



casa com cachorro brabo
meu anjo da guarda
abana o rabo



amei em cheio
meio amei-o
meio nao amei-o



pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando



abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri
antigamente eu era eterno



o mar o azul o sábado
liguei pro céu
mas dava sempre ocupado



primeiro frio do ano
fui feliz
se não me engano



ano novo
anos buscando
um ânimo novo



tarde de vento
até as árvores
querem vir pra dentro



longo o caminho
até uma flor
só de espinho



nadando num mar de gente
deixei lá atrás
meu passo a frente



a noite - enorme
tudo dorme
menos teu nome



acabou a farra
formigas mascam
restos da cigarra



essa idéia
ninguém me tira
matéria é mentira



relógio parado
o ouvido ouve
o tic tac passado



-- que tudo se foda,
disse ela,
e se fodeu toda





Fonte: Haikais

Saudação - Lawrence Ferlinghetti


A cada animal que abate ou come sua própria
                                             espécie 
E cada caçador com rifles montados em
                                             camionetas 
E cada miliciano ou atirador particular
                                  com mira telescópica 
E cada capataz sulista de botas com seus cães
                    & espingardas de cano serrado 
E cada policial guardião da paz com seus cães
                     treinados para rastrear & matar 
E cada tira à paisana ou agente secreto
             com seu coldre oculto cheio de morte 
E cada funcionário público que dispara contra o
               público ou que alveja-para-matar
               criminosos em fuga 
E cada Guardia Civil em qualquer pais que   
        guarda os civis com algemas & carabinas 
E cada guarda-fronteiras em tanto faz qual
       posto da barreira em tanto faz qual lado de
       qual Muro de Berlim cortina de Bambu ou
       de Tortilha 
E cada soldado de elite patrulheiro rodoviário 
              em calças de equitação sob medida &
              capacete protetor de plástico &
              revólver em coldre ornado de prata 
E cada radiopatrulha com armas antimotim &
             sirenes e cada tanque antimotim com
             cassetetes & gás lacrimogênio
E cada piloto de avião com foguetes & napalm
                                                    sob as asas 
E cada capelão que abençoa bombardeiros que
                                                    decolam 
E qualquer Departamento de Estado de qualquer
     superestado que vende armas aos dois lados
E cada Nacionalista em tanto faz que Nação em
      tanto faz qual mundo Preto Pardo ou Branco
      que mata por sua Nação 
E cada profeta com arma de fogo ou branca e  
      quem quer que reforce as luzes do espírito
      à força ou reforce o poder de qualquer
      estado com mais Poder 
E a qualquer um e a todos que matam & matam & matam & matam pela Paz
Eu ergo meu dedo médio na única saudação apropriada

Prisão de Santa Rita, 1968
                                [Tradução: Nelson Ascher]

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

24 Horas - Lobão

Não sei se ainda faz algum sentido
Te lembra que o dia já começa a clarear
Devagar as luzes da cidade vão morrendo
E você aí parada olhando um poste bêbado apagar

Eu chamo o cara do estacionamento
Você desata a rir da pinta neoliberal de um playboy
Te peço a gorjeta, você me passa a carteira inteira
Insinuando discretamente que bebeu demais

E as ruas vazias se despedem da noite
Você insiste em parar pra comer um hot-dog
E as ruas vazias se despedem da noite
Você insinuando discretamente estar tão só

Mas não se leva a mal
Que a solidão paira na cidade
Pertence à cidade
Não, não se leva a mal
De vez ou outra se sentir assim, se sentir assim

Imediatamente após o seu pedido
Entro no posto 24 horas pra reabastecer
Te olho enviesado pelas prateleiras, indeciso
Nada é realmente aquilo que a gente quer viver

Então eu digo, meu amor, vamos para a casa
Esquece esse vazio que essas coisas todas dão
Vamos embora pra bem longe em nosso carrinho
Só nós dois, nossa alegria e nossa escuridão

 

Do disco "Noite" de 1997 composta por Lobão

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Citação - Sylvia Plath

"O que mais me apavora, penso, é a morte da imaginação. Quando o céu lá fora é só cor-de-rosa e os telhados, negros: aquela mente fotográfica que paradoxalmente nos revela a verdade, mas a verdade do mundo, que nada vale. O que eu desejo é aquele espírito sintetizador, aquela força 'que da forma' e que faz rebrotar prolificamente criando suas próprias palavras com mais inventividade do que Deus. Se eu me sento aqui e não faço nada, o mundo prossegue batendo como um tambor flácido, sem significado".

Cambrige Notes, 1956

Espelho - Sylvia Plath

Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo imediatamente
Do jeito que for, desembaçado de amor ou aversão.
Não sou cruel, apenas  verdadeiro -
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
Na maior parte do tempo medito sobre a parede em frente.
Ela é rosa, pontilhada. Já olhei para ela tanto tempo,
Eu acho que ela é parte do meu coração. Mas ela oscila.
Rostos e escuridão nos separam toda hora.

Agora sou um lago. Uma mulher se dobra sobre mim,
Buscando na minha superfície o que ela realmente é.
Então ela se vira para aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e as reflito fielmente.
Ela me recompensa com lágrimas e um agitar das mãos.
Sou importante para ela. Ela vem e vai.
A cada manhã é o seu rosto que substitui a escuridão.
Em mim ela afogou uma menina, e em mim uma velha
Se ergue em direção a ela dia após dia, como um peixe terrível.
 
Link: Mirror  

Olmo - Sylvia Plath

Sei o que há no fundo, ela diz. Conheço com minha própria raiz.
Era o que você temia.
Eu não: já estive lá.
.
É o mar que você ouve em mim,
Suas frustrações?
Ou a voz do vazio, essa é a sua loucura?
.
O amor é uma sombra.
Como você chora e mente por ele.
Ouça: estes são seus cascos; fugiram, como cavalos.
.
Vou galopar a noite inteira
Até que sua cabeça vire pedra, seu travesseiro vire turfa,
Ecoando, ecoando.
.
Ou devo te trazer o borbulhar das poções?
Isso agora é chuva, esse silêncio imenso.
E este é seu fruto: branco-metálico, como arsênico.
.
Sofri a atrocidade dos poentes.
Queimada até as raízes
Meus filamentos ardem e ficam, emaranhado de arames.
.
Meus estilhaços se espalham em centelhas.
Um vento violento assim
Não suporta obstáculos: preciso gritar.
.
A lua, também, não tem pena de mim: me engole,
Cruel e estérilSeus raios me arruínam.
Ou quem sabe a peguei.
.
Eu a deixo fugir, fugir
Magra e minguante, como depois de uma cirurgia radical.
Seus pesadelos me enfeitam e me possuem.
.
Dentro de mim mora um grito.
De noite ele sai com suas garras, à caça
De algo para amar.
.
Sou torturada por essa coisa negra
Que dorme em mim;
O dia inteiro sinto seu roçar leve e macio, sua maldade.
.
Nuvens passam e se dissipam.
São estas as faces do amor, pálidas, irrecuperáveis?
Foi pra isso que atormentei meu coração?
.
Não consigo compreender além.
E o que é isso agora, essa cara
Assassina com seus galhos sufocantes? -
.
O beijo traiçoeiro da serpente.
Petrifica o desejo. Esses são os erros, solitários e lentos,
Que matam, matam, matam.
 
Link para o original: Elm - Sylvia Plath

Poema do Livro Sylvia Plath Poemas - tradução Rodrigo Garcia Lopes e Mauricio Arruda Mendonça

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Faísca - Charles Bukowski

a fábrica longe da Av. Santa Fé era
melhor.
empacotávamos suporte de luminárias
pesados em caixas longas
e depois jogávamos as caixas em pilhas
de seis.
aí os carregadores
vinham
esvaziar sua mesa e
você começava as seis seguintes.

jornada de dez horas
quatro no sábado
pagamento pelo sindicato
bom demais para trabalho não especializado
e se você não chegava lá
com músculos
logo, logo ia arranjá-los

a maioria de nós em
camisetas brancas e jeans
cigarro no bico
cerveja furtiva
a gerência olhando
pro outro lado

poucos brancos
os brancos não demoravam
trabalhadores preguiçosos
na maioria mexicanos e
pretos
frios e rancorosos
brilhava uma faca
ou alguém
era ferido
a gerência olhando
pro outro lado
 
os raros brancos que ficavam
eram loucos
trabalhava-se
e as jovens mexicanas
nos mantinham
acesos e esperançosos
seus olhos piscando
mensagens
de lá da
linha de montagem.

eu era um dos
brancos loucos
que duraram
eu era um bom trabalhador
só pelo ritmo da coisa
pelo diabo da coisa
e depois de dez horas
de trabalho duro
depois de trocar insultos
vivendo entre atritos
com os que não suficientemente calmos
para se conformar
saíamos
ainda dispostos
subíamos em nosso velhos
carros para
voltar para casa
beber metade da noite
brigar com nossa mulheres

para recomeçar no dia seguinte
a embalar os suportes
sabendo que éramos
uns babacas
fazendo os ricos mais ricos

enfiávamos
nossa camiseta branca
e o jeans
e deslizámos
entre jovens mexicanas

éramos simples e prefeitos
para o que fazíamos
ressaca
podíamos
fazer bem pra burro
nosso trabalho
mas isso
não nos tocou
nunca

entre aquelas paredes despelando

o barulho das brocas
e serras

as faíscas

éramos uma turma boa
naquele balé brutal

éramos maravilhosos

dávamos a eles
muito mais do que pediam

e ainda assim
a eles não dávamos
nada.

Fonte: Os 25 Melhores Poemas de Charles Bukowski, tradução Jorge Wanderley

domingo, 11 de setembro de 2011

Paranóia em Astrakan - Roberto Piva

Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
     onde anjos surdos percorrem as madrugas e tingindo seus olhos com
         lágrimas invulneráveis
     onde crianças católicas oferecem limões aos pequenos paquidermes
         que saem escondidos das tocas
     onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
          estéreis e incendeiam internatos
     onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
          a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
     no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
     última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
     branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
     escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorroidas das
     beatas
onde as cartas reclamam drinks de emergência para lindos tornozelos
     arranhados
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
    penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
     imaginação

Poesias Carmina Burana - Goliardo


 I- "Ó FORTUNA"
Ó Fortuna,
tal a lua,
uma forma variável!
Sempre enchendo
ou encolhendo:
ó que vida execrável!
Pouco duras,
quando curas
de nossa mente as mazelas
a pobreza,
a riqueza, tu derretes ou congelas.
 
Bruta sorte,
és de morte:        
tua roda é volúvel,         
benfazeja,    
malfazeja,
toda sorte é dissolúvel.
Disfarçada
de boa fada,
minha ruína sempre queres;
simulando
estar brincando,
minhas costas nuas feres.
 
Gozar saúde,
mostrar virtude:
isto escapa minha sina;
opulento
ou pulguento
o azar me arruína.
Chegou a hora,
convém agora,
o alaúde dedilhar;
a pouca sorte
do homem forte
devemos todos lamentar." (CB no. 17)


II- "UMA JOVEM PASTORA"
Uma jovem pastora,
logo ao sol nascer,
levava seu rebanho
e lã para tecer.
 
Seu rebanho inclui
carneiro e jumentinha
cabrito e cabrita
bezerro e bezerrinha.
 
Ela viu na relva,
sentado um estudante:
"Senhor, que faz aqui ?
Brinquemos um instante!" (CB no. 90)

III- "AI DE MIM, QUE MEDO"
Ai de mim, que medo,
furaram meu segredo:
amava loucamente.
 
Revela o ocorrido
meu ventre entumescido;
o parto é iminente.
 
Mamãe me fustiga,
papai me castiga,
só fazem me xingar.
 
Fico em casa trancada,
não piso na calçada,
não posso mais brincar.
 
Se eu na rua andar,
todos vão me olhar:
"Um monstro a passar!"
 
Vêem com mesquinhez
minha gravidez
e passam sem falar.
 
Cotovelos se afrontam,
dedos sujos me apontam
como malfeitora.
 
Olhares me incriminam,  
 à fogueira me destinam,
a grande pecadora.         
É o fim da picada:
ser a moça mais falada
desta freguesia!
 
Dores sem fim padeço,
aflita, desfaleço,
choro de agonia.
E tudo agravou-se,
meu noivo exilou-se,
para longe daqui.
Ante a paterna vingança,
exilou-se na França
tão distante de mim.
Ele estando ausente
receio que não agüente
esta dor sem fim. " (CB  no. 126)


IV-" SE UM RAPAZ E UMA DONZELA"
Se um rapaz e uma donzela,
ficassem juntos na mesma cela...
R. Ó casal abençoado!
   O amor tempera,
   anima o noivado;
   o tédio se oblitera.
 
Brincam juntos num só gesto
de bocas, pernas e o resto!
R. Ó casal abençoado... (CB no. 183)

V- "AH, SE EU PUDESSE COMPRAR"
Ah, se eu pudesse comprar
o mundo, do Reno até o mar.
Tudo isto me pode faltar:
basta a rainha da Inglaterra
em meus braços se deitar." (CB no. 145)

VI- 'QUANDO NA TABERNA ESTAMOS"
Quando na taberna estamos,
falar da morte evitamos,
jogar, isto nos conforta,
o dado é que importa.
Quem paga o pato na taberna ?
Qual a lei que nos governa?  
Tais perguntas em tua cabeça
permita-me que esclareça.
 
Se não bebem, jogam dados,
ou cometem outros pecados.
Vários devem, ao jogar,
sua roupa empenhar:
ficarão bem trajados
ou com trapos camuflados,
ninguém aqui teme a morte,
todos, bebendo, tentam a sorte.
 
Brindam logo a quem paga
com o vinho que se traga,
duas vezes os prisioneiros,
três vezes nossos herdeiros,
quatro vezes os batizados,
cinco vezes nossos finados,
seis, todas as mães solteiras,
sete, os guardas das fronteiras.
 
Oito, os confrades meliantes,
nove, os monges caminhantes,
dez, os nossos navegantes,
onze vezes os discordantes,
doze vezes os flagelantes,
treze vezes os viandantes.
Por fim, ao Papa, e ao Rei
brindam nossos fora-da-lei.
 
Bebe a dona, bebe o senhor,
bebe o cabo e o monsenhor,
bebe o dono, bebe a dama,
bebe o servo, bebe a ama,
o apressado e o tardo,
bebe o branco, bebe o pardo,
o burguês com o vago
o camponês com o mago.
 
Bebe o pobre, bebe o doente,
o marginal, o indigente,
o moço e o veterano,         
bebe o abade com o decano,
bebe o irmão, bebe a irmã,
bebe o velho, bebe a anciã,
bebe o nobre, bebe o vil
bebem cem e bebem mil.
 
Com seis ducados não pagamos
todo vinho que tragamos
bebendo todos à porfia.
Mas ao beber na alegria,
falsos irmãos de nós judiam
sempre nos vilipendiam.
Quem nos inveja, seja maldito,
no livro dos justo não fique inscrito." (CB no. 196)

 
 
fonte e onde podem ser encontradas mais informações sobre Carmina Burana