sábado, 26 de novembro de 2011

Um .45 para pagar o aluguel - Bukowski

Duke tinha essa filha, que se chamava Lala, de 4 anos. Era a primogênita, logo dele, sempre tão precavido pra evitar filhos, com medo de ser morto por um deles. Mas agora vivia louco de alegria, encantado com a menina, que adivinhava tudo o que ele pensava – tal a comunicação que havia entre ela e ele, entre ele e ela.
Duke estava no supermercado com Lala, e os dois conversavam, dizendo uma coisa e outra. Falavam a respeito de tudo e ela lhe contava tudo o que sabia, e sabia muito, instintivamente, ao passo que Duke, se por um lado pouco sabia, por outro fazia o que podia. No fim dava certo. Sentiam-se
felizes um com o outro.
– O que é aquilo ali? – pergunta ela.
– Um coco.
– O que que tem dentro?
– Um troço branco pra se mastigar.
– Por que que é por dentro?
– Porque todo esse troço branco que a gente mastiga se sente bem ali dentro, no interior da casca. E diz, consigo mesmo, “puxa, que gostoso que tá isto aqui!”.
– Por que que é gostoso?
– Porque sim. Qualquer um acharia. Eu, por exemplo.
– Não acharia, não. Não ia poder dirigir o teu carro ali dentro, nem poder me enxergar. Ou comer presunto com ovo.
– Presunto com ovo não é tudo o que existe.
– O que que é tudo que existe, então?
– Sei lá. Pode ser que seja o miolo do sol, puro gelo.
– O MIOLO do SOL...? PURO GELO?
– É.
– Como seria o miolo do sol, se fosse puro gelo?
– Ué, todo mundo pensa que o sol é aquela bola de fogo.
E tenho impressão que nenhum cientista vai concordar comigo, mas eu acho que seria assim, óh.
Duke pega um abacate.
– Oba!
– Tá vendo, um acabate é isto aqui: sol gelado. A gente come o sol e depois sai andando por aí, com uma sensação gostosa.
– O sol tá em toda aquela cerveja que tu bebe?
– Tá, sim.
– Dentro de mim também?
– Mais do que em qualquer pessoa que conheço.
– Pois eu acho que tu tem um SOL DESTE TAMANHO dentro de ti!
– Obrigado, meu bem.

Caminham mais um pouco e terminam as compras. Duke não escolhe nada. Lala enche o carrinho com tudo o que quer. Muita coisa não é de comer: balões, lápis crayon, um revólver de brinquedo, um espaçonauta com pára-quedas que abre nas costas quando se atira o boneco pro ar. Espaçonauta do cacete.
Lala não gosta da mulher que está no caixa. Fecha a maior carranca pra ela. Coitada: a cara parece escavada, vazia – é um show de terror e não sabe.
– Oi, queridinha! – diz a caixa.
Lala não responde. Duke não sopra nada pra ela dizer. Pagam as compras e vão pro carro.
– Eles ficam com o dinheiro da gente – comenta Lala.
– Ficam.
– E aí tu tem que trabalhar de noite pra ganhar mais dinheiro. Eu não gosto quando você sai. Quero brincar de mamãe. Eu sou a mãe e tu é o filhinho.
– Tá, então vamos começar. Eu sou o filhinho. Que tal, mamãe?
– Tá legal, filhinho. Sabe dirigir o carro?
– Posso tentar.
Aí já estão dentro do automóvel, rodando. Um filho-da-puta qualquer pisa no acelerador e por pouco não bate no carro deles quando dobram à esquerda.
– Filhinho, por que que todo mundo quer dar batida na gente?
– Ué, mamãe, é porque são uns infelizes e todo mundo que se sente infeliz sai por aí machucando o que vem pela frente.
– Não tem ninguém que seja feliz?
– Muita gente finge que é.
– Por quê, hem?
– Porque sentem vergonha e medo e não têm coragem de confessar.
– Tu sente medo?
– Só tenho coragem de confessar pra você – vivo tão assustado, mamãe, que às vezes até parece que vou morrer de uma hora pra outra.
– Ô filhinho, não quer a mamadeira?
– Quero sim, mamãe, mas vamos esperar pra chegar em casa.
Continuam rodando, dobram à direita na Normandie. Fica mais difícil pra baterem na gente quando se dobra à direita.
– Filhinho, tu vai trabalhar hoje de noite?
– Vou.
– Por que que tu trabalha de noite?
– É mais escuro. As pessoas não vêem.
– Por que que tu não quer que as pessoas vejam?
– Porque posso ser preso e ir pra cadeia.
– Cadeia? O que é isso?
– É tudo o que existe.
– Tudo MENOS EU!
Param o carro e levam as compras pra dentro.
– Mãeeê! – chama Lala –, trouxemos as compras! Sol gelado, espaçonautas, tudo!
A mãe (cujo nome é “Mag”) responde:
– Que bom.
Depois, pra Duke:
– Porra, preferia que você não tivesse que sair hoje de noite. Tô com mau pressentimento. Não vai, Duke.
– Você tá com mau pressentimento? E eu então, meu bem? Todas as vezes. Já faz parte da coisa. Tamos lascados. A garota jogou tudo o que pôde naquele carrinho, desde presunto enlatado até caviar.
– Ué, e você deixou, porra?
– Não gosto de contrariar a menina.
– Quando for em cana vai ter que gostar.
– Olha, Mag, nesta profissão o cara sempre acaba passando um pouco de tempo no xadrez. Não adianta esquentar a cabeça com isso. O negócio é assim mesmo. Já cumpri pena. Tive mais sorte que muita gente por aí.
– Por que não procura um serviço decente?
– Filhinha, trabalhar numa prensa de perfuração esfola qualquer um. E não existe nenhum serviço decente. De um jeito ou doutro se acaba morrendo. Já estou encaminhado na vida – sou uma espécie de dentista, digamos, que arranca os dentes da sociedade. É a única coisa que eu sei fazer. Agora é tarde demais. E você sabe como todo mundo trata o cara que sai da prisão. Sabe o que fazem com a gente, já te contei, já...
– Eu sei que tu já contou, mas...
– Mas, mas, mass, massss! – atalha Duke –, puta que pariu, deixa eu terminar!
– Então termina.
– Esses industriais sacanas e exploradores que moram em Beverly Hills e Malibu. São especialistas em “reabilitar” presidiários, ou gente que saiu da cadeia. Perto deles, esse papo de liberdade condicional de merda até cheira bem. Que nem rosa. Mas é pura tapeação. Trabalho de escravo. O pessoal encarregado de vigiar os que ganham liberdade condicional sabe disso, pensa que não sabe? Como nós todos sabemos. Poupam despesa pro governo, contribuem pra enriquecer outro gajo qualquer. Onda. Pura onda. De tudo quanto é lado. Fazem a gente trabalhar três vezes mais que o homem comum, enquanto cometem verdadeiros assaltos contra a população, sempre dentro da lei – vendem qualquer porcaria por dez ou vinte vezes mais que o valor verdadeiro. Mas é dentro da lei, da lei que eles fizeram.
– Puta merda, quantas vezes já não ouvi essa ladainha...
– E puta merda, vai ouvir OUTRA VEZ! Pensa que não enxergo nem sinto nada? Acha que devo ficar de bico calado? Até com minha própria mulher? Você casou comigo, não foi? A gente não fode? Não vive junto, não?
– Você é que fode com tudo! Agora taí chorando.
– Vai à MERDA! Cometi um engano, um erro técnico! Era moço; não entendi as regras desses cagões...
– E agora tá querendo justificar a tua burrice!
– Ei, essa foi ótima! GOSTEI. Minha mulherzinha. Sua babaca. Babaca. Tu não passa de uma xota nos degraus da Casa Branca, bem aberta, e de cuca fundida...
– A criança tá ouvindo, Duke.
– Ótimo. E vou continuar. Sua babaca. REABILITAR. É a palavra que usam esses sacanas de Beverly Hills metidos a besta. São tão decentes e HUMANOS, porra. As mulheres deles ficam escutando Mahler lá no Music Center e fazendo doações de caridade, que podem descontar no imposto de renda. E são eleitas as dez melhores do ano pelo L. A. Times. E sabe o que os maridos fazem? Ficam xingando a gente, como se fosse cachorro, lá naquela fábrica de vigarice que eles têm. Cortam o salário, embolsam a diferença e nem adianta reclamar porque não vai adiantar mesmo. Tudo é uma tal merda, será que ninguém percebe? Será que ninguém VÊ?
– Eu...
– CALA ESSA BOCA! Mahler, Beethoven, STRAVINSKY! Obrigam a gente a fazer serão de graça. E espinafram o tempo todo, cacete. E é só dizer UMA palavra, e já estão telefonando pro fiscal da liberdade condicional: “Desculpa, Jensen, mas devo lhe contar: o teu cara roubou 25 dólares do caixa. Logo agora, que estávamos começando a gostar dele.”
– Então que espécie de justiça você quer? Puxa, Duke, já nem sei o que fazer. Você fica aí, falando feito matraca, sem parar. Fica de porre e vem me dizer que Dillinger foi o maior sujeito que viveu até hoje. Se sacode todo na cadeira de balanço, pra lá e pra cá, completamente bêbado, e berra “Dillinger!” eu também estou viva. ouça...
– Dillinger que se foda! já morreu. justiça? na América não existe. só tem uma. pergunta pros Kennedys, pergunta pros mortos, pergunta pra quem você quiser!
Duke salta da cadeira de balanço, vai ao armário, remexe embaixo da caixa de enfeites do pinheirinho de Natal e pega o trabuco. um .45.
– isto aqui, óh. isto aqui. é a única justiça que existe na América. é a única coisa que todo mundo entende.
sacode aquela porra pra cima e pra baixo.
Lala brinca com o espaçonauta. O pára-quedas não abre direito. Que dúvida: uma tapeação. Outro blefe. Que nem a gaivota de olho parado. Ou a caneta esferográfica. Ou Cristo clamando pelo Pai, com a ligação interrompida.
– Escuta – pede Mag –, guarda essa arma maluca de uma vez. Eu vou procurar emprego. Me deixa ir.
– VOCÊ, procurando emprego?! Há quanto tempo vem repetindo isso? Você só presta pra foder, a troco de nada, e pra ficar aí sentada pelos cantos, lendo revista e enchendo a boca de bombom.
– Ah meu Deus, a troco de nada, não – eu AMO você, Duke, palavra de honra.
De repente ele cansa.
– Tá legal, ótimo. Então pelo menos vai guardar as compras.
Duke põe o trabuco de novo no armário. Senta e acende um cigarro.
– E cozinha alguma coisa pra mim antes de eu sair por aí.
– Duke – pergunta Lala –, tu quer que eu te chame de Duke ou de papai?
– como quiser, queridinha. você é quem manda.
– por que que tem cabelo na casca do coco?
– ah, que merda, sei lá. por que que tenho pentelho nos bagos?
Mag vem da cozinha com uma lata de ervilha na mão.
– Não admito que fale assim com minha filha.
– tua filha? tá vendo aquela boca carnuda? igualzinha àminha. tá vendo os olhos? os intestinos? que nem os meus, sem tirar nem botar. tua filha – só porque saiu dessa racha e mamou nas tuas tetas. não é filha de ninguém. só dela mesma.
– eu insisto – diz Mag – que você não devia falar desse jeito perto da criança!
– você insiste... você insiste...
– é isso mesmo! – afirma, com a lata de ervilha no ar, equilibrada na palma da mão esquerda. – insisto, sim.
– se você não tirar essa lata de ervilha da minha frente, eu juro, palavra, eu juro, por Deus ou sem Deus, QUE ENFIO ISSO AÍ NO TEU RABO, DAQUI ATÉ A LUA!
Mag volta pra cozinha com a lata. e não reaparece. Duke vai ao armário buscar o casaco e o trabuco. se despede da menina com um beijo. ela tem mais encanto que pele bronzeada no inverno e meia dúzia de cavalos brancos correndo por colinas cobertas de grama. são as comparações que lhe ocorrem; começa a se emocionar. dá o fora apressado.mas fecha a porta devagar. Mag sai da cozinha.
– Duke já foi – avisa a criança.
– é, eu sei.
– tô ficando com sono, mamãe. lê uma história pra mim.
as duas sentam no sofá.
– mãe, o Duke vai voltar?
– é, o filho-da-puta vai voltar, sim.
– o que que é filho-da-puta?
– o que o Duke é. eu amo ele.
– tu ama um filho-da-puta?
– sim – ri Mag. – amo, sim. vem cá, belezinha. aqui no meu colo.
abraça a criança com força.
– oh, você tá tão quentinha, tá que é um presuntinho, uma rosquinha que acaba de sair do forno!
– não sou NENHUM presuntinho ou ROSQUINHA, tá ouvindo? VOCÊ É QUE É!
– hoje é noite de lua cheia. tá muito claro, demais. fico com medo, morrendo de medo. ah meu deus, eu amo esse cara, ah deus do céu...
Mag pega uma caixa de papelão e tira um livro pra criança dali de dentro.
– mamãe, por que que tem cabelo na casca do coco?
– cabelo na casca do coco?
– é.
– espera, eu tava fazendo café. tô ouvindo daqui o barulho da água. já deve estar fervendo. tenho que ir lá pra apagar o gás.
– tá.
Mag vai à cozinha e Lala fica esperando no sofá. enquanto Duke, parado na frente de uma loja de bebidas na esquina do Hollywood Bvd. com a Normandie, se pergunta: mas pra quê, pra quê, porra?
aquilo não tá com boa cara, não tá cheirando bem. pode ser até um sacana, nos fundos, de pistola na mão, espiando por algum buraco. foi assim que pegaram o Louie. estouraram com ele, feito pato de barro em tiro ao alvo de parque de diversões. homicídio lícito. o mundo inteiro sacana se safa, boiando na merda do homicídio permitido por lei. o lugar não inspira confiança. quem sabe um barzinho pequeno? um inferninho de bicha. qualquer coisa fácil. com grana suficiente pra um mês de aluguel. tô perdendo os culhões, pensa Duke. é só facilitar e não demora sou eu que vou andar sentado por aí, a escutar Shostakovitch.
torna a entrar no Ford preto 61.
e começa a rodar para a zona norte. 3 quarteirões. 4. 6. 12 quarteirões, rumo àquele mundo gélido. enquanto Mag, sentada com a criança no colo, se põe a ler um livro, A VIDA NA FLORESTA...
– a doninha e outros animais da mesma família, o visão, a marta, a chinchila, são seres ágeis, velozes, selvagens. Roedores carnívoros, vivem em contínua e sanguinária competição pela...
de repente a criança pega no sono e a lua cheia aparece no céu.

Este conto está no livro "Fabulário geral do delírio cotidiano: ereções, ejaculações e exibicionismos - parte II" publicado pela LPM .

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