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sábado, 19 de julho de 2014

texana - Charles Bukowski

ela é do Texas e pesa
47 quilos
e para em frente ao
espelho penteando oceanos
de cabelos ruivos
que descem ao longo de todas
suas costas até a bunda.
o cabelo é magico e lança
faíscas quando eu me deito na cama
e a vejo penteá-los
ela parece uma criatura
saída de um filme mas está
aqui de fato, fazemos amor
pelo menos uma vez por dia e
ela consegue me fazer rir
sempre que deseja.
as mulheres do Texas são sempre
saudáveis, e além disso ela
limpa meu refrigerador, minha pia
o banheiro, e faz comida e
me serve alimentos saudáveis
e lava pratos também.


 "Hank", ela me disse,
segurando uma lata de suco de
uva, "este é o melhor de todos".
 dizia na lata: suco natural de uva
ROSA do Texas.

ela se parece com a Katherine Hepburn
na época
do ensino médio, e vejo esses
47 quilos
penteando um metro
 de cabelo ruivo
diante do espelho
e a sinto dentro de meus olhos,
e os dedos e as pernas e barriga
a sentem, assim como
 aquela outra parte,
e toda Los Angeles se desfaz
e chora de contentamento,
as paredes das alcovas tremem -
 o oceano invade tudo e ela se vira
e me diz, "maldito cabelo!"
e eu digo
"sim".

 Poema do Livro - O amor é uma cão dos diabos

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

olá, como você está?

esse medo de ser o que eles são:
mortos.

pelo menos eles não estão na rua, eles
têm o cuidado de ficar dentro de casa, aqueles
malucos que se sentam sozinhos na frente de suas tvs,
suas vidas cheias de enlatados, riso mutilado.

seu bairro ideal
de carros estacionados
de pequenos gramados
de pequenas casas
as pequenas portas que abrem e fecham
quando seus parentes os visitam
durante as férias
as portas se fechando
atrás do moribundo que morre tão devagar
atrás do morto que ainda está vivo
em seu tranquilo bairro de classe média
de ruas sinuosas
de agonia
de confusão
de horror
de medo
de ignorância.

um cão parado atrás de uma cerca.

um homem silencioso na janela.

Bukowski

Esse é um dos meus favoritos...

Link para o original Bukowski Poemas

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Vós crédulos mortais, alucinados - Bocage

 LXV

Vós crédulos mortais, alucinados
De sonhos, de quimeras, de aparências,
Colheis por uso erradas conseqüencias
Dos acontecimentos desastrados:

Se à perdição correis precipitados
Por cegas, por fogosas impaciências,
Indo cair, gritais que são violências
D(e) inexoráveis céus, de negros fados:

Se um celeste poder, tirano e duro,
Às vezes extorquisse as liberdades,
Que prestava, ó Razão, teu lume puro?

Não forçam corações as divindades;
Fado amigo não há, nem fado escuro:
Fados são as paixões, são as vontades.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Alcoólicas - Hilda Hilst

Alcoólicas – I
É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A Vida é líquida.
Alcoólicas – II
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
* * *
Alcoólicas – III
Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida
Alcoólicas – IV
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.
Alcoólicas – V
Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Lembrança de Morrer - Alvarez de Azevedo

Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro,
... Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minha alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade... é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade... é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai... de meus únicos amigos,
Pouco - bem poucos... e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
A minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
A sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta - sonhou - e amou na vida.

Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!

Mas quando preludia ave da aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua pratear-me a lousa!

Solitário - Augusto dos Anjos

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!


Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!


Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
— Velho caixão a carregar destroços —


Levando apenas na tumbas carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

domingo, 4 de dezembro de 2011

Sonhos do Crepúsculo - Carl Sandburg

Sonhos no crepúsculo,
Apenas sonhos encerrando o dia,
Retornando-o com tal desfecho,
Aos tons cinza, escurecidos,
Às coisas fundas e longínquas
Do território dos sonhos.

Sonhos, apenas sonhos no crepúsculo,
Apenas as rotas imagens lembradas
Dos tempos idos, quando o ocaso de cada dia
Escrevia em prantos as perdas da afeição.

Lágrimas e perdas e sonhos desfeitos
Talvez acolham teu coração
ao anoitecer.

(Dreams in the Dusk, poema de Carl Sandburg,
tradução de Fernando Campanella)

Copiei daqui: Palavreares 

sábado, 26 de novembro de 2011

Não: devagar - Alvaro de Campos

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez tudo isso...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Poema tirado de uma noticia de Jornal - Manuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Tragédia Brasileira - Manuel Bandeira

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade,

Conheceu Maria Elvira na Lapa, - prostituída, com sífilis, dermite nos dedos,
uma aliança empenhada e o dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou
médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez
nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos,
Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua
Clapp,
outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato,
Inválidos...

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de
inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em
decúbito dorsal, vestida de organdi azul. 


Sou fã de Manuel Bandeira estava faltando um poema dele aqui.

a escapada - Charles Bukowski

escapar de uma viúva negra
é um milagre tão grande quanto a própria arte.
que rede ela pode tecer
enquanto o arrasta vagarosamente em sua direção
ela irá abraçá-lo
depois, quando estiver satisfeita,
ela o matará
ainda no mesmo abraço
e lhe sugará todo o sangue.


escapei da minha viúva negra
porque ela possuía machos demais
em sua rede
e enquanto ela abraçava um deles
e depois o outro e então ainda
outro
me libertei
retornei
ao lugar onde estava anteriormente.


ela sentirá minha falta -
não de meu amor
mas do gosto do meu sangue,
mas ela é boa, ela encontrará outro
sangue;
ela é tão boa que quase sinto falta de minha morte,
mas não o suficiente;
escapei. eu vejo as outras
teias.

domingo, 30 de outubro de 2011

Querer - José Eduardo Mendes Camargo

Quero massagear o teu corpo,
Como se te prestasse um tributo de paixão.
E com minhas mãos, como que num ritual,
Percorrer-te todos os caminhos
E dele extrair a chama da combustão.
E cheirá-la por inteiro,
No ardor de farejar o âmago de tua alma fêmea.
E beijá-la voluptuosamente e com meus lábios
Sorver o suor ensandecido de teus poros
Quero, então, corpos unidos,
Dançar ao som de teus gemidos e sussurros
A dança terna e alucinante do amor.

Sossegue Coração - Paulo Leminski

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos afora

calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa

Guerra de trincheira - Charles Bukowski

abatido pela gripe
bebendo cerveja
o rádio num volume
suficientemente alto para superar
os sons produzidos
pelo estéreo das pessoas que
recém se mudaram
para casa
ao lado.
dormindo ou acordados
eles ajustam seu aparelho
no volume máximo
deixando suas
portas e janelas
abertas.

cada um deles tem
18, casados, vestem
sapatos vermelhos,
são loiros,
magros.
tocam de
tudo: jazz
música clássica, rock,
country, moderna
contanto que esteja
alta.

este é o problema
de ser pobre:
temos de conviver com
o som dos outros.
semana passada foi
minha vez:
havia duas mulheres
aqui
brigando entre si
e elas
correram pela calçada
gritando.
a polícia veio.

agora é a vez
deles.
agora caminho
pra lá e pra cá em
meus calções sujos,
dois tampões de borracha
enfiados bem fundo
em meus ouvidos.

chego a pensar em
assassinato
esses coelhos
pequenos e rudes!
pedacinhos ambulantes
de ranho!

mas na nossa terra
e do nosso jeito
nunca terá havido
uma chance;
somente quando
as coisas não estão
indo tão mal
por um instante
que esquecemos.

algum dia cada um
deles estará morto
algum dia cada um
deles terá um
caixão separado
e então haverá
silêncio.

mas por ora
é Bob Dylan
Bob Dylan Bob
Dylan por aí
afora.


domingo, 16 de outubro de 2011

Seguros - Charles Bukowski



a casa dos vizinhos me deixa
triste.
ambos marido e mulher acordam cedo e
vão ao trabalho.
chegam em casa no início da noite.
têm um pequeno menino e uma menina.
pelas 21h todas as luzes na casa
se apagam.
na manhã seguinte ambos marido e
mulher acordam cedo de novo e vão ao
trabalho.
retornam no início da noite.
pelas 21h todas as luzes se
apagam.

a casa dos vizinhos me deixa
triste.
as pessoas são boas pessoas, eu
gosto deles.

mas sinto que estão se afogando.
e não posso salvá-los.

eles sobrevivem.
eles não são
sem-teto.

mas o preço é
terrível.

às vezes durante o dia
eu olho para a casa
e a casa olha para
mim
e a casa
chora, sim, é verdade, eu
sinto isso.

a casa está triste pelas pessoas que ali
moram
e eu também
e olhamos um ao outro
e carros passam pra lá e pra cá
na rua,
barcos atravessam o porto
e as altas palmeiras cutucam
o céu
e esta noite às 21h
as luzes se apagarão,
e não somente naquela
casa
e não somente nesta
cidade.
vidas seguras se escondem,
quase
paradas,
a respiração dos
corpos e pouco
mais.


Encontrei aqui: Assim falou Zaratrusta

sábado, 15 de outubro de 2011

Rua Longa - Lawrence Ferlinghetti



A rua longa
que é a rua do mundo
passa em torno do mundo
cheia de todas as pessoas do mundo
pra não dizer todas as vozes
de todas as pessoas
que já existiram
Quem ama e quem chora
dorminhocos e virgens
vendedores de spaghetti e homens-sanduíche
oradores e leitores
desossados banqueiros
donas-de-casa criteriosas
cobertas de esnobices de náilon
desertos de publicitários
manadas de secundaristas fogosas
multidões de colegiais
falando pelos cotovelos do mundo
e andando por aí sem parar
se pendurando na primeira janela
para ver o que passa
no mundo lá fora
onde tudo acontece
mais cedo ou mais tarde
se de fato acontece mesmo
E a rua longa
que é a rua mais longa
de todo o mundo
mas não é tão longa
como parece
passa por
todas as cidades e todas as cenas
cada alameda abaixo
cada boulevard para cima
cruza cada cruzamento
com sinais vermelhos e sinais verdes
passa por cidades ao sol
continentes na chuva
Hong Kongs famintas
incultiváveis Tuscaloosas
Oaklands da alma
Dublins da imaginação
E a rua longa
rola na sua ronda
como um enorme trem que chia
ofegando em volta do mundo
com a bagunça dos passageiros
os bebês e as cestas de piquenique
os cachorros e os gatos
e todos se perguntando
quem é que está
na cabine da frente
guiando o trem
se é que lá tem mesmo alguém
o trem que corre ao redor do mundo
como um mundo que vai ficando redondo
todos ali se perguntando
que será que há
se há qualquer coisa
enquanto alguns se pendurando
espicham o olhar para a frente
tentando dar uma manjada
no maquinista na cabine
que só tem um olho
tentando ver o maquinista
divisar sua face
encontrar seu olho
quando eles passam numa curva
e jamais conseguem
embora de vez em quando pareça
que eles até já estão
para conseguir
E assim a rua vai rolando
vai o trem rebolando
estendendo nas janelas
suas lá dele as demais janelas de todos
os edifícios de
todas as ruas do mundo
deslizando também
na luz do mundo
na noite do mundo
com sinais nas travessias
fachos que estão perdidos mas focam
multidões em carnavais
circos na boca da noite
puteiros e parlamentos
fontes que o pensamento abandona
portas de porão e portas não achadas
figuras indecisas na lâmpada
ídolos que dançam pálidos
na ida continuada do mundo
Mas chegamos agora
à parte mais vazia da rua
à parte da rua
que passa em volta
da parte mais vazia do mundo
E não é aqui
que você vai
mudar de trem
Não é neste lugar
que você faz
alguma coisa
Esta é aquela parte do mundo
onde nada está fazendo
onde ninguém está fazendo
nada
onde em nenhum lugar há
alguém que não seja
apenas você
nem mesmo um espelho
que te faça em dois
nem uma alma
a não ser a sua
talvez
e mesmo assim
não aí
talvez
ou então não sua
talvez
porque você está como se diz
morto
você chegou à sua estaçãoQueira descer


de, Um parque de diversões da cabeça
Trad: Eduardo Bueno e Leonardo Froés
L&PM editores, 1984

uma mudança de hábito - Charles Bukowski

Shirley chegou a cidade com uma perna quebrada
e conheceu o chicano que fumava
longos charutos slim
e eles foram morar juntos
na Beacon Street
5º andar;
a perna não atrapalhava
muito e
eles assistiam televisão juntos
e Shirley cozinhava, de
muletas e tudo;
havia um gato, Bogey,
e eles tinham alguns amigos
e falavam sobre esportes e Richard Nixon
e de como era dificil tocar
as coisas.
funcionou por alguns meses,
Shiley se livrou até do gesso,
 e o chicano, Manuel,
conseguiu um emprego em Baltimore,
Shirley costurava todos os botões caídos
das camisas de Manuel, remendava e emparelhava as meias
dele, então
um dia Manuel retornou para casa, e
ela havia sumido -
sem discussão, sem bilhete, apenas
sumira levando todas as roupas
e pertences, e
Manuel sentou-se junto a janela e olhou para rua
e não foi ao trabalho
na manhã seguinte nem
na outra,
sequer ligou para avisar,
perdeu o emprego,
recebeu uma multa por estacionamento proibido, fumou
quatrocentos e sessenta cigarros, foi
preso por embriaguez, saiu por
fiança, foi
a julgamento e se confessou
culpado.

quando o aluguel venceu ele
se mudou de Beacon Street,
deixou o gato e foi viver com
seu irmão e
os dois enchiam a cara
todas as noites
e falavam sobre o quão
terrível
era a vida.

Manuel jamais voltou a fumar
aqueles longos charutos slim
porque Shirley sempre dizia
como
ele ficava bonito
com eles na boca.

sábado, 1 de outubro de 2011

HaiKais - Paulo Leminski

confira
tudo que respira
conspira



passa e volta
a cada gole
uma revolta



bateu na patente
batata
tem gente



verde a árvore caída
vira amarelo
a última vez na vida



nada me demove
ainda vou ser o pai
dos irmaos karamazov



na rua
sem resistir
me chamam
torno a existir



debruçado num buraco
vendo o vazio
ir e vir



casa com cachorro brabo
meu anjo da guarda
abana o rabo



amei em cheio
meio amei-o
meio nao amei-o



pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando



abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri
antigamente eu era eterno



o mar o azul o sábado
liguei pro céu
mas dava sempre ocupado



primeiro frio do ano
fui feliz
se não me engano



ano novo
anos buscando
um ânimo novo



tarde de vento
até as árvores
querem vir pra dentro



longo o caminho
até uma flor
só de espinho



nadando num mar de gente
deixei lá atrás
meu passo a frente



a noite - enorme
tudo dorme
menos teu nome



acabou a farra
formigas mascam
restos da cigarra



essa idéia
ninguém me tira
matéria é mentira



relógio parado
o ouvido ouve
o tic tac passado



-- que tudo se foda,
disse ela,
e se fodeu toda





Fonte: Haikais

Saudação - Lawrence Ferlinghetti


A cada animal que abate ou come sua própria
                                             espécie 
E cada caçador com rifles montados em
                                             camionetas 
E cada miliciano ou atirador particular
                                  com mira telescópica 
E cada capataz sulista de botas com seus cães
                    & espingardas de cano serrado 
E cada policial guardião da paz com seus cães
                     treinados para rastrear & matar 
E cada tira à paisana ou agente secreto
             com seu coldre oculto cheio de morte 
E cada funcionário público que dispara contra o
               público ou que alveja-para-matar
               criminosos em fuga 
E cada Guardia Civil em qualquer pais que   
        guarda os civis com algemas & carabinas 
E cada guarda-fronteiras em tanto faz qual
       posto da barreira em tanto faz qual lado de
       qual Muro de Berlim cortina de Bambu ou
       de Tortilha 
E cada soldado de elite patrulheiro rodoviário 
              em calças de equitação sob medida &
              capacete protetor de plástico &
              revólver em coldre ornado de prata 
E cada radiopatrulha com armas antimotim &
             sirenes e cada tanque antimotim com
             cassetetes & gás lacrimogênio
E cada piloto de avião com foguetes & napalm
                                                    sob as asas 
E cada capelão que abençoa bombardeiros que
                                                    decolam 
E qualquer Departamento de Estado de qualquer
     superestado que vende armas aos dois lados
E cada Nacionalista em tanto faz que Nação em
      tanto faz qual mundo Preto Pardo ou Branco
      que mata por sua Nação 
E cada profeta com arma de fogo ou branca e  
      quem quer que reforce as luzes do espírito
      à força ou reforce o poder de qualquer
      estado com mais Poder 
E a qualquer um e a todos que matam & matam & matam & matam pela Paz
Eu ergo meu dedo médio na única saudação apropriada

Prisão de Santa Rita, 1968
                                [Tradução: Nelson Ascher]

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Espelho - Sylvia Plath

Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo imediatamente
Do jeito que for, desembaçado de amor ou aversão.
Não sou cruel, apenas  verdadeiro -
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
Na maior parte do tempo medito sobre a parede em frente.
Ela é rosa, pontilhada. Já olhei para ela tanto tempo,
Eu acho que ela é parte do meu coração. Mas ela oscila.
Rostos e escuridão nos separam toda hora.

Agora sou um lago. Uma mulher se dobra sobre mim,
Buscando na minha superfície o que ela realmente é.
Então ela se vira para aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e as reflito fielmente.
Ela me recompensa com lágrimas e um agitar das mãos.
Sou importante para ela. Ela vem e vai.
A cada manhã é o seu rosto que substitui a escuridão.
Em mim ela afogou uma menina, e em mim uma velha
Se ergue em direção a ela dia após dia, como um peixe terrível.
 
Link: Mirror