domingo, 30 de outubro de 2011

Querer - José Eduardo Mendes Camargo

Quero massagear o teu corpo,
Como se te prestasse um tributo de paixão.
E com minhas mãos, como que num ritual,
Percorrer-te todos os caminhos
E dele extrair a chama da combustão.
E cheirá-la por inteiro,
No ardor de farejar o âmago de tua alma fêmea.
E beijá-la voluptuosamente e com meus lábios
Sorver o suor ensandecido de teus poros
Quero, então, corpos unidos,
Dançar ao som de teus gemidos e sussurros
A dança terna e alucinante do amor.

Sossegue Coração - Paulo Leminski

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos afora

calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa

Guerra de trincheira - Charles Bukowski

abatido pela gripe
bebendo cerveja
o rádio num volume
suficientemente alto para superar
os sons produzidos
pelo estéreo das pessoas que
recém se mudaram
para casa
ao lado.
dormindo ou acordados
eles ajustam seu aparelho
no volume máximo
deixando suas
portas e janelas
abertas.

cada um deles tem
18, casados, vestem
sapatos vermelhos,
são loiros,
magros.
tocam de
tudo: jazz
música clássica, rock,
country, moderna
contanto que esteja
alta.

este é o problema
de ser pobre:
temos de conviver com
o som dos outros.
semana passada foi
minha vez:
havia duas mulheres
aqui
brigando entre si
e elas
correram pela calçada
gritando.
a polícia veio.

agora é a vez
deles.
agora caminho
pra lá e pra cá em
meus calções sujos,
dois tampões de borracha
enfiados bem fundo
em meus ouvidos.

chego a pensar em
assassinato
esses coelhos
pequenos e rudes!
pedacinhos ambulantes
de ranho!

mas na nossa terra
e do nosso jeito
nunca terá havido
uma chance;
somente quando
as coisas não estão
indo tão mal
por um instante
que esquecemos.

algum dia cada um
deles estará morto
algum dia cada um
deles terá um
caixão separado
e então haverá
silêncio.

mas por ora
é Bob Dylan
Bob Dylan Bob
Dylan por aí
afora.


domingo, 16 de outubro de 2011

Seguros - Charles Bukowski



a casa dos vizinhos me deixa
triste.
ambos marido e mulher acordam cedo e
vão ao trabalho.
chegam em casa no início da noite.
têm um pequeno menino e uma menina.
pelas 21h todas as luzes na casa
se apagam.
na manhã seguinte ambos marido e
mulher acordam cedo de novo e vão ao
trabalho.
retornam no início da noite.
pelas 21h todas as luzes se
apagam.

a casa dos vizinhos me deixa
triste.
as pessoas são boas pessoas, eu
gosto deles.

mas sinto que estão se afogando.
e não posso salvá-los.

eles sobrevivem.
eles não são
sem-teto.

mas o preço é
terrível.

às vezes durante o dia
eu olho para a casa
e a casa olha para
mim
e a casa
chora, sim, é verdade, eu
sinto isso.

a casa está triste pelas pessoas que ali
moram
e eu também
e olhamos um ao outro
e carros passam pra lá e pra cá
na rua,
barcos atravessam o porto
e as altas palmeiras cutucam
o céu
e esta noite às 21h
as luzes se apagarão,
e não somente naquela
casa
e não somente nesta
cidade.
vidas seguras se escondem,
quase
paradas,
a respiração dos
corpos e pouco
mais.


Encontrei aqui: Assim falou Zaratrusta

sábado, 15 de outubro de 2011

Rua Longa - Lawrence Ferlinghetti



A rua longa
que é a rua do mundo
passa em torno do mundo
cheia de todas as pessoas do mundo
pra não dizer todas as vozes
de todas as pessoas
que já existiram
Quem ama e quem chora
dorminhocos e virgens
vendedores de spaghetti e homens-sanduíche
oradores e leitores
desossados banqueiros
donas-de-casa criteriosas
cobertas de esnobices de náilon
desertos de publicitários
manadas de secundaristas fogosas
multidões de colegiais
falando pelos cotovelos do mundo
e andando por aí sem parar
se pendurando na primeira janela
para ver o que passa
no mundo lá fora
onde tudo acontece
mais cedo ou mais tarde
se de fato acontece mesmo
E a rua longa
que é a rua mais longa
de todo o mundo
mas não é tão longa
como parece
passa por
todas as cidades e todas as cenas
cada alameda abaixo
cada boulevard para cima
cruza cada cruzamento
com sinais vermelhos e sinais verdes
passa por cidades ao sol
continentes na chuva
Hong Kongs famintas
incultiváveis Tuscaloosas
Oaklands da alma
Dublins da imaginação
E a rua longa
rola na sua ronda
como um enorme trem que chia
ofegando em volta do mundo
com a bagunça dos passageiros
os bebês e as cestas de piquenique
os cachorros e os gatos
e todos se perguntando
quem é que está
na cabine da frente
guiando o trem
se é que lá tem mesmo alguém
o trem que corre ao redor do mundo
como um mundo que vai ficando redondo
todos ali se perguntando
que será que há
se há qualquer coisa
enquanto alguns se pendurando
espicham o olhar para a frente
tentando dar uma manjada
no maquinista na cabine
que só tem um olho
tentando ver o maquinista
divisar sua face
encontrar seu olho
quando eles passam numa curva
e jamais conseguem
embora de vez em quando pareça
que eles até já estão
para conseguir
E assim a rua vai rolando
vai o trem rebolando
estendendo nas janelas
suas lá dele as demais janelas de todos
os edifícios de
todas as ruas do mundo
deslizando também
na luz do mundo
na noite do mundo
com sinais nas travessias
fachos que estão perdidos mas focam
multidões em carnavais
circos na boca da noite
puteiros e parlamentos
fontes que o pensamento abandona
portas de porão e portas não achadas
figuras indecisas na lâmpada
ídolos que dançam pálidos
na ida continuada do mundo
Mas chegamos agora
à parte mais vazia da rua
à parte da rua
que passa em volta
da parte mais vazia do mundo
E não é aqui
que você vai
mudar de trem
Não é neste lugar
que você faz
alguma coisa
Esta é aquela parte do mundo
onde nada está fazendo
onde ninguém está fazendo
nada
onde em nenhum lugar há
alguém que não seja
apenas você
nem mesmo um espelho
que te faça em dois
nem uma alma
a não ser a sua
talvez
e mesmo assim
não aí
talvez
ou então não sua
talvez
porque você está como se diz
morto
você chegou à sua estaçãoQueira descer


de, Um parque de diversões da cabeça
Trad: Eduardo Bueno e Leonardo Froés
L&PM editores, 1984

uma mudança de hábito - Charles Bukowski

Shirley chegou a cidade com uma perna quebrada
e conheceu o chicano que fumava
longos charutos slim
e eles foram morar juntos
na Beacon Street
5º andar;
a perna não atrapalhava
muito e
eles assistiam televisão juntos
e Shirley cozinhava, de
muletas e tudo;
havia um gato, Bogey,
e eles tinham alguns amigos
e falavam sobre esportes e Richard Nixon
e de como era dificil tocar
as coisas.
funcionou por alguns meses,
Shiley se livrou até do gesso,
 e o chicano, Manuel,
conseguiu um emprego em Baltimore,
Shirley costurava todos os botões caídos
das camisas de Manuel, remendava e emparelhava as meias
dele, então
um dia Manuel retornou para casa, e
ela havia sumido -
sem discussão, sem bilhete, apenas
sumira levando todas as roupas
e pertences, e
Manuel sentou-se junto a janela e olhou para rua
e não foi ao trabalho
na manhã seguinte nem
na outra,
sequer ligou para avisar,
perdeu o emprego,
recebeu uma multa por estacionamento proibido, fumou
quatrocentos e sessenta cigarros, foi
preso por embriaguez, saiu por
fiança, foi
a julgamento e se confessou
culpado.

quando o aluguel venceu ele
se mudou de Beacon Street,
deixou o gato e foi viver com
seu irmão e
os dois enchiam a cara
todas as noites
e falavam sobre o quão
terrível
era a vida.

Manuel jamais voltou a fumar
aqueles longos charutos slim
porque Shirley sempre dizia
como
ele ficava bonito
com eles na boca.

domingo, 9 de outubro de 2011

Citação - Oscar Wilde

" A melhor forma de se livrar de uma tentação é ceder a ela "

Trecho de Nem Bobo Nem Nada de Rui Werneck de Capistrano

" - O filho mais novo pintou o cabelo de roxo! Diz que é da hora. Desse jeito vou acabar me abraçando com o diabo. E os amigos dele, cada um com uma cor. Virou viveiro de passarinho, o quintal."

" - Outro dia ajudei a mulher a levar o mais velho pra igreja. Cara, aquela rezaiada e o papo mole do pastor. Só pra levar a grana da mulherada. Não é que a do lado me deu uma olhada meio demorada? Ué, não vão lá pra afastar a tentação?"

Trechos do livro Nem Bobo Nem Nada de Rui Werneck de Capistrano o qual recomendo a todos.

sábado, 1 de outubro de 2011

Reportagem sobre a geração beat

No site da revista mundo estranho tem uma pequena reportagem sobre a geração beat. Segue o link: O que foi a Geração Beat?

Apelo - Dalton Trevisan



       Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
       Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.   
       Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.

Tem Vídeo

HaiKais - Paulo Leminski

confira
tudo que respira
conspira



passa e volta
a cada gole
uma revolta



bateu na patente
batata
tem gente



verde a árvore caída
vira amarelo
a última vez na vida



nada me demove
ainda vou ser o pai
dos irmaos karamazov



na rua
sem resistir
me chamam
torno a existir



debruçado num buraco
vendo o vazio
ir e vir



casa com cachorro brabo
meu anjo da guarda
abana o rabo



amei em cheio
meio amei-o
meio nao amei-o



pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando



abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri
antigamente eu era eterno



o mar o azul o sábado
liguei pro céu
mas dava sempre ocupado



primeiro frio do ano
fui feliz
se não me engano



ano novo
anos buscando
um ânimo novo



tarde de vento
até as árvores
querem vir pra dentro



longo o caminho
até uma flor
só de espinho



nadando num mar de gente
deixei lá atrás
meu passo a frente



a noite - enorme
tudo dorme
menos teu nome



acabou a farra
formigas mascam
restos da cigarra



essa idéia
ninguém me tira
matéria é mentira



relógio parado
o ouvido ouve
o tic tac passado



-- que tudo se foda,
disse ela,
e se fodeu toda





Fonte: Haikais

Saudação - Lawrence Ferlinghetti


A cada animal que abate ou come sua própria
                                             espécie 
E cada caçador com rifles montados em
                                             camionetas 
E cada miliciano ou atirador particular
                                  com mira telescópica 
E cada capataz sulista de botas com seus cães
                    & espingardas de cano serrado 
E cada policial guardião da paz com seus cães
                     treinados para rastrear & matar 
E cada tira à paisana ou agente secreto
             com seu coldre oculto cheio de morte 
E cada funcionário público que dispara contra o
               público ou que alveja-para-matar
               criminosos em fuga 
E cada Guardia Civil em qualquer pais que   
        guarda os civis com algemas & carabinas 
E cada guarda-fronteiras em tanto faz qual
       posto da barreira em tanto faz qual lado de
       qual Muro de Berlim cortina de Bambu ou
       de Tortilha 
E cada soldado de elite patrulheiro rodoviário 
              em calças de equitação sob medida &
              capacete protetor de plástico &
              revólver em coldre ornado de prata 
E cada radiopatrulha com armas antimotim &
             sirenes e cada tanque antimotim com
             cassetetes & gás lacrimogênio
E cada piloto de avião com foguetes & napalm
                                                    sob as asas 
E cada capelão que abençoa bombardeiros que
                                                    decolam 
E qualquer Departamento de Estado de qualquer
     superestado que vende armas aos dois lados
E cada Nacionalista em tanto faz que Nação em
      tanto faz qual mundo Preto Pardo ou Branco
      que mata por sua Nação 
E cada profeta com arma de fogo ou branca e  
      quem quer que reforce as luzes do espírito
      à força ou reforce o poder de qualquer
      estado com mais Poder 
E a qualquer um e a todos que matam & matam & matam & matam pela Paz
Eu ergo meu dedo médio na única saudação apropriada

Prisão de Santa Rita, 1968
                                [Tradução: Nelson Ascher]