Eu estava sentado em um bar na avenida Western. Era perto da meia-noite e estava metido em uma das minhas habituais confusões. Quero dizer, você sabe, nada dá certo: as mulheres, os trabalhos, a falta de trabalhos, o tempo, os cães. Por fim, você simplesmente senta em uma espécie de estado de transe e espera como se estivesse no banco da parada de ônibus aguardando a morte.
Bem, estava sentado lá e então chega essa mulher com cabelo preto e longo, bom corpo, olhos castanhos e tristes. Não me virei para olhá-la. Ignorei-a, mesmo ela tendo sentado no banco ao lado do meu, quando havia uma duzia de outros lugares vagos. Na verdade, éramos os únicos no bar, exceto pelo balconista. Ela pediu um vinho seco. Depois me perguntou o que eu estava bebendo.
- Scotch com água.
- Dê-lhe um scotch com água - ela disse ao balconista.
Bem, isso era incomum.
Abriu a bolsa, removeu uma pequena gaiola de arame e tirou algumas pessoas pequenas e as colocou no balcão. Tinham todos aproximadamente dez centimetros de altura e estavam vivos e bem vestidos. Havia quatro deles, dois homens e duas mulheres.
- Fazem desses agora - ela disse. - São muito caros. Custaram quase dois mil dolores cada um quando comprei. Agora estão chegando aos 2.400 dólares. Não sei como são feitos, mas provavelmente é coisa fora da lei.
As pessoas em miniatura estavam caminhando por cima do balcão. Repentinamente um dos pequenos homens deu um tapa na cara de uma das mulheres.
- Sua vagabunda - ele disse - , já chega!!
- Não George, você não pode - ela gritou -, eu te amo! Vou me matar! Tenho que ter você!
- Não me importo! - disse o pequeno sujeito e puxou um cigarrinho e o acendeu. - Tenho direito de viver.
- Se você não a quer - disse outro sujeitinho -, fico com ela, eu a amo.
- Mas eu não quero você, Marty. Estou apaixonada pelo George.
- Mas ele é um idiota, Anna, um idiota completo!
- Eu sei, mas o amo de qualquer forma.
O idiotinha caminhou pelo balcão e beijou a outra mulherzinha.
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quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
sábado, 26 de novembro de 2011
Um .45 para pagar o aluguel - Bukowski
Duke tinha essa filha, que se chamava Lala, de 4 anos. Era a primogênita, logo dele, sempre tão precavido pra evitar filhos, com medo de ser morto por um deles. Mas agora vivia louco de alegria, encantado com a menina, que adivinhava tudo o que ele pensava – tal a comunicação que havia entre ela e ele, entre ele e ela.
Duke estava no supermercado com Lala, e os dois conversavam, dizendo uma coisa e outra. Falavam a respeito de tudo e ela lhe contava tudo o que sabia, e sabia muito, instintivamente, ao passo que Duke, se por um lado pouco sabia, por outro fazia o que podia. No fim dava certo. Sentiam-se
felizes um com o outro.
– O que é aquilo ali? – pergunta ela.
– Um coco.
– O que que tem dentro?
– Um troço branco pra se mastigar.
– Por que que é por dentro?
– Porque todo esse troço branco que a gente mastiga se sente bem ali dentro, no interior da casca. E diz, consigo mesmo, “puxa, que gostoso que tá isto aqui!”.
– Por que que é gostoso?
– Porque sim. Qualquer um acharia. Eu, por exemplo.
– Não acharia, não. Não ia poder dirigir o teu carro ali dentro, nem poder me enxergar. Ou comer presunto com ovo.
– Presunto com ovo não é tudo o que existe.
– O que que é tudo que existe, então?
– Sei lá. Pode ser que seja o miolo do sol, puro gelo.
– O MIOLO do SOL...? PURO GELO?
– É.
– Como seria o miolo do sol, se fosse puro gelo?
– Ué, todo mundo pensa que o sol é aquela bola de fogo.
E tenho impressão que nenhum cientista vai concordar comigo, mas eu acho que seria assim, óh.
Duke pega um abacate.
– Oba!
– Tá vendo, um acabate é isto aqui: sol gelado. A gente come o sol e depois sai andando por aí, com uma sensação gostosa.
– O sol tá em toda aquela cerveja que tu bebe?
– Tá, sim.
– Dentro de mim também?
– Mais do que em qualquer pessoa que conheço.
– Pois eu acho que tu tem um SOL DESTE TAMANHO dentro de ti!
– Obrigado, meu bem.
Duke estava no supermercado com Lala, e os dois conversavam, dizendo uma coisa e outra. Falavam a respeito de tudo e ela lhe contava tudo o que sabia, e sabia muito, instintivamente, ao passo que Duke, se por um lado pouco sabia, por outro fazia o que podia. No fim dava certo. Sentiam-se
felizes um com o outro.
– O que é aquilo ali? – pergunta ela.
– Um coco.
– O que que tem dentro?
– Um troço branco pra se mastigar.
– Por que que é por dentro?
– Porque todo esse troço branco que a gente mastiga se sente bem ali dentro, no interior da casca. E diz, consigo mesmo, “puxa, que gostoso que tá isto aqui!”.
– Por que que é gostoso?
– Porque sim. Qualquer um acharia. Eu, por exemplo.
– Não acharia, não. Não ia poder dirigir o teu carro ali dentro, nem poder me enxergar. Ou comer presunto com ovo.
– Presunto com ovo não é tudo o que existe.
– O que que é tudo que existe, então?
– Sei lá. Pode ser que seja o miolo do sol, puro gelo.
– O MIOLO do SOL...? PURO GELO?
– É.
– Como seria o miolo do sol, se fosse puro gelo?
– Ué, todo mundo pensa que o sol é aquela bola de fogo.
E tenho impressão que nenhum cientista vai concordar comigo, mas eu acho que seria assim, óh.
Duke pega um abacate.
– Oba!
– Tá vendo, um acabate é isto aqui: sol gelado. A gente come o sol e depois sai andando por aí, com uma sensação gostosa.
– O sol tá em toda aquela cerveja que tu bebe?
– Tá, sim.
– Dentro de mim também?
– Mais do que em qualquer pessoa que conheço.
– Pois eu acho que tu tem um SOL DESTE TAMANHO dentro de ti!
– Obrigado, meu bem.
sábado, 1 de outubro de 2011
Apelo - Dalton Trevisan
Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.
Tem Vídeo
sábado, 20 de agosto de 2011
Na cela do inimigo público número um - Charles Bukowski
Estava escutando Brahms em Filadélfia em 1942. numa vitrola pequena. o segundo movimento da 2a sinfonia. naquela época eu morava sozinho, bebia devagar uma garrafa de vinho do Porto e fumava um charuto ordinário, num quartinho limpo, como se diz, houve uma batida na porta. pensei que fosse alguém pra me entregar o prêmio Nobel ou Pulitzer. eram 2 sujeitos enormes com cara de burros e grossos.
Bukowski?
é.
mostraram o emblema: F.B.I.
nos acompanhe. melhor vestir o casaco, vai se ausentar por uns tempos.
não sabia o que tinha feito, nem perguntei. achei que, de qualquer forma, estava tudo perdido. um deles tirou o Brahms da vitrola. descemos a escada e saímos na rua, cabeças apareciam nas janelas como se todo mundo já estivesse sabendo.
depois a eterna voz de mulher: ah, lá vai aquele homem horrível prenderam o cafajeste!
simplesmente não dou sorte com elas.
continuei me esforçando pra lembrar o que podia ter feito, e a única coisa que me ocorria é que talvez, de porre, houvesse matado alguém. mas não conseguia entender o que era que o F.B.I. , tinha a ver com aquilo.
mantenha as mãos nos joelhos e não mexa com elas!
havia 2 homens no banco da frente e 2 no de trás, de modo que imaginei que devia ter assassinado alguém — decerto algum figurão.
continuamos rodando, de repente esqueci e levantei a nulo pra coçar o nariz.
OH IA ESSA MÃO AI!!
quando chegamos na delegacia, um dos agentes apon-tou para uma fileira de fotos nas 4 paredes.
tá vendo estes retratos?, perguntou com dureza.
olhei um por um. estavam bem emoldurados, mas nenhuma das caras me dizia nada. tô vendo, sim — respondi.
são homens que foram assassinados quando trabalhavam pro F.B.I.
não sei o que ele queria que eu dissesse, por isso continuei calado.
me levaram pra outra sala.
tinha um homem atrás da escrivaninha.
CADÊ O TEU TIO JOHN? — gritou na minha cara.
como? — retruquei.
CADÊ O TEU TIO JOHN?
eu não sabia a quem ele estava se referindo, por um instante cheguei a pensar que quisesse dizer que eu andava por aí carregando alguma arma secreta pra matar gente quando ficava bêbado. me senti todo atrapalhado, não entendendo mais nada.
me refiro a JOHN BUKOWSKI!
ah. ele morreu.
merda, POR ISSO é que a gente não conseguia descobrir onde ele estava!
me levaram lá pra baixo, pra uma cela cor de laranja. era sábado de tarde. pelas grades da janela dava pra ver as pessoas caminhando na calçada. que sorte que tinham! do outro lado da rua havia uma loja de discos. o alto-falante tocava música pra mim, tudo parecia tão calmo e tranqüilo lá fora. ficava ali parado, de pé, tentando lembrar o que poderia ter feito. sentia vontade de chorar, mas não saia lágrima alguma. era só uma espécie de tristeza, de náusea, uma mistura de uma com a outra, não existe nada pior. acho que você sabe o que quero dizer, todo mundo, volta e meia, passa por isso, só que comigo é muito freqüente, acontece demais.
a Prisão de Moyamensing me lembrava um castelo antigo. 2 vastos portões de madeira se abriram pra me acolher. até hoje me admiro que não tivéssemos que passar por cima de um fosso.
me puseram na cela de um sujeito gordo com cara de perito contador.
sou Courtney Taylor, inimigo público n2 1 disse ele pra mim.
por que você foi preso? — perguntou.
(a essa altura eu já sabia; tinha perguntado no caminho.)
fui convocado e não me apresentei.
tem 2 coisas que aqui ninguém topa: recruta que não se apresenta
e exibicionista tarado.
código de honra de ladrões, hem? manter o país forte pra continuar com a roubalheira.
mesmo assim, ninguém gosta de convocados omissos.
sou de fato inocente, me mudei e esqueci de deixar o novo endereço na junta de recrutamento. comuniquei aos correios. recebi carta de St. Louis quando já estava aqui, dizendo que tinha que comparecer ao exame médico, respondi que não dava para ir até lá e pedi pra fazer o exame aqui mesmo. botaram os caras atrás de mim e agora tô em cana, não entendo: então, se eu quisesse escapar do recrutamento, ia dar o endereço pra eles?
todos vocês sempre se fazem de sonsos. pra mim isso é conversa mole pra boi dormir.
me estirei no beliche. passou um carcereiro.
LEVANTA ESSE RABO DE MORTO DAÍ! — berrou comigo.
levantei meu rabo de morto de convocado omisso.
você quer se matar? — perguntou Taylor.
quero — respondi.
então puxa esse cano ai em cima que prende a lâmpada da cela, enche aquele balde com água e coloca o pé dentro. desatarraxa, tira a lâmpada fora e enfia o dedo no encaixe. ai você sai daqui.
fiquei olhando um bocado de tempo pra lâmpada. obrigado, Taylor, você é um verdadeiro amigão.
as luzes apagaram, me deitei e eles começaram. piolhos.
porra, o que é isto? — berrei.
piolhos — respondeu Taylor. — aqui tem muito.
aposto que tenho mais que você — retruquei.
tá apostado.
dez cents?
dez cents.
comecei a catar e a matar os meus. fui colocando em cima da mesinha de madeira.
por fim demos um basta. Levamos os piolhos pra grade da cela, onde havia luz, e contamos. eu tinha 13 e ele 18. entreguei-lhe a moedinha. só muito mais tarde descobri que ele partia os dele ao meio e depois esticava. era estelionatário. profissional. filho-da-puta.
fiquei cobra com os dados no pátio de exercício. ganhava todo santo dia e já estava cheio da grana. cheio da grana pra cadeia, bem entendido. fazia 15 ou 20 pratas por dia. o regulamento proibia o jogo de dados e os guardas, lá de cima das torres, apontavam as metralhadoras pra gente e berravam PAREM COM ISSO! mas sempre se dava um jeito de continuar a partida. quem trouxe os dados pra prisão sem ninguém perceber foi um tarado exibicionista. o tipo do tarado que não me agrada. aliás, não gostava de nenhum deles. todos tinham queixo fraco, olhar lacrimoso, bunda magra e jeito viscoso, projetos de homens. acho que não era culpa deles, mas não gostava de olhar pra aquela gente. esse a que me refiro sempre se chegava depois de cada partida.
você tá afiado, tá ganhando uma nota preta, dá um pouco pra mim.
eu largava uns trocados naquela mão de cadáver e ele se afastava, feito cobra, o porco sacana, sonhando com o dia em que pudesse mostrar a pica de novo pra garotinhas de 3 anos. eu dava o dinheiro porque era o único meio de me conter e não bater com o cinto nele, mas quem fazia isso ia pra solitária, uni buraco deprimente — não tanto quanto o pão molhado na água que se ficava obrigado a comer. eu via quando os caras saíam de lá: demoravam um mês pra voltar ao seu estado normal. mas todos nós éramos abortos da natureza. eu não fugia à regra. não fugia mesmo. fui muito duro com ele. só conseguia raciocinar direito quando desviava o olhar.
estava rico. depois que apagavam as luzes, o cozinheiro trazia pratos de comida, comida da boa e à beça, sorvete, bolo, torta, café de primeira. Taylor me avisou pra nunca dar mais de 15 cents pra ele, senão seria exagero. o cozinheiro agradecia em voz baixa e perguntava se devia voltar na noite seguinte.
mas nem tem dúvida — respondia eu.
era a mesma comida que levavam para o diretor da prisão, que, evidentemente, gostava de passar bem. os presos andavam todos famintos, enquanto que Taylor e eu desfilávamos pra lá e pra cá, parecendo 2 mulheres no nono mês de gravidez.
gosto desse cozinheiro — comentei —, acho um cara legal.
e ele é — concordou Taylor.
não parávamos de reclamar dos piolhos pro carcereiro, e ele berrava conosco:
ONDE PENSAM QUE ESTÃO? NUM HOTEL? QUEM TROUXE ESSES BICHOS PRA CÁ FORAM VOCÊS MESMOS!
o que, naturalmente, considerávamos um insulto.
os carcereiros eram mesquinhos, os carcereiros eram burros e viviam mortos de medo. sentia pena deles.
finalmente puseram Taylor e eu em celas separadas e fumigaram a que tinha piolhos.
encontrei Taylor no pátio.
me botaram junto com um pirralho — disse Taylor, bobo que só vendo —, tá por fora de tudo, um horror.
fiquei com um velho que não sabia falar inglês e passava o tempo todo sentado no penico, a repetir: TARA BUBA COME, TARA BUBA CAGA! não parava nunca. tinha a vida programada: comer e cagar. acho que se referia a alguma figura mitológica da terra dele. ah, vai ver que era Taras Bulba? sei lá. a primeira vez que saí pra fazer exercício no pátio, o velho rasgou o lençol do meu beliche e fez com ele uma corda; pendurou as meias e as cuecas naquilo e quando entrei ficou tudo pingando em cima de mim. nunca saía da cela, nem pra tomar banho. não havia cometido crime nenhum, diziam, só queria ficar ali dentro e deixavam, um ato de bondade? fiquei brabo com ele porque não gosto de roçar a pele em cobertor de lã. minha pele é muito sensível.
seu velho sacana — gritava com ele —, já matei um cara e é só você não andar direito que acabo matando dois!
mas ele ficava simplesmente sentado ali no penico, rindo pra mim e dizendo: TARA BUBA COME, BUBA CAGA!
acabei desistindo, mas, seja lá como for, nunca precisei escovar o chão, aquela porra de casa dele vivia sempre úmida e escovada, devia ser a cela mais limpa da América, do mundo. e adorava aquela refeição extra de noite, se adorava.
o F.B.I. resolveu que eu estava inocente da acusação de ter fugido deliberadamente da convocação das forças armadas e me mandou para o centro de recrutamento. tinha uma porção de presos que mandavam pra lá. fui aprovado no exame biométrico e depois tive que falar com o psiquiatra.
você acredita na guerra? — perguntou.
não.
está disposto a lutar?
estou.
(andava com uma idéia meio biruta de sair de uma trincheira e sair caminhando em direção à linha de fogo até que me matassem.)
ficou um bocado de tempo sem falar nada, só escrevendo numa folha de papel. depois levantou os olhos.
a propósito, na próxima quarta-feira à noite vai ter uma festa com médicos, pintores e escritores, queria te convidar. você aceita o convite?
não.
tá certo — retrucou —, não precisa ir,
aonde?
pra guerra. fiquei só olhando pra ele.
pensou que a gente não ia entender, não é? entregue esta folha de papel ao funcionário da sala ao lado.
era uma longa caminhada, a folha estava dobrada e presa por um clipe no meu cartão. levantei a ponta e espiei: "... possui uma grande sensibilidade dissimulada pela fisionomia impassível..." boa piada, pensei, puta que pariu! eu: sensível!!
e lá se foi Moyamensing. e assim ganhei a guerra.
Retirado do Livro: Fabulário geral do delírio cotidiano - parte II
Retirado do Livro: Fabulário geral do delírio cotidiano - parte II
sábado, 6 de agosto de 2011
Uma Vela para Dario - Dalton Trevisan
Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.
Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.
Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.
A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.
Conto retirado do livro "20 contos menores"
sexta-feira, 24 de junho de 2011
Amor - Clarice Lispector
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
sábado, 28 de maio de 2011
A mulher mais linda da cidade
Das 5 irmãs, Cass era a mais moça e a mais bela. E a mais linda mulher da cidade. Mestiça de índia, de corpo flexível, estranho, sinuoso que nem cobra e fogoso como os olhos: um fogaréu vivo ambulante. Espírito impaciente para romper o molde incapaz de retê-lo. Os cabelos pretos, longos e sedosos, ondulavam e balançavam ao andar. Sempre muito animada ou então deprimida, com Cass não havia esse negócio de meio termo. Segundo alguns, era louca. Opinião de apáticos. Que jamais poderiam compreendê-la. Para os homens, parecia apenas uma máquina de fazer sexo e pouco estavam ligando para a possibilidade de que fosse maluca. E passava a vida a dançar, a namorar e beijar. Mas, salvo raras exceções, na hora agá sempre encontrava forma de sumir e deixar todo mundo na mão.
As irmãs a acusavam de desperdiçar sua beleza, de falta de tino; só que Cass não era boba e sabia muito bem o que queria: pintava, dançava, cantava, dedicava-se a trabalhos de argila e, quando alguém se feria, na carne ou no espírito, a pena que sentia era uma coisa vinda do fundo da alma. A mentalidade é que simplesmente destoava das demais: nada tinha de prática. Quando seus namorados ficavam atraídos por ela, as irmãs se enciumavam e se enfureciam, achando que não sabia aproveitá-los como mereciam. Costumava mostrar-se boazinha com os feios e revoltava-se contra os considerados bonitos — “uns frouxos”, dizia, “sem graça nenhuma. Pensam que basta ter orelhinhas perfeitas e nariz bem modelado… Tudo por fora e nada por dentro…” Quando perdia a paciência, chegava às raias da loucura; tinha um gênio que alguns qualificavam de insanidade mental.
quinta-feira, 21 de abril de 2011
Uma garota de lindas pernas - Charles Bukowski
Um Conto de Charles Bukowski Traduzido por: Mário Campos
A primeira vez que a vi foi num bar na rua Alvarado. Lisa era o nome. Na época eu tinha 24 anos e ela aparentava uns 35. Ela estava lá sentada no centro do bar e os dois bancos ao seu redor estavam vazios. Achei um tanto estranho não haver nenhum cara lhe penteando, tentando conseguir uma boa trepada.
Comparada com a maioria das mulheres que frequentavam aquele antro, ela realmente bonita. Seu rosto era meio arredondado e seu cabelo aparentemente nada tinha de excepcional, mas havia uma espécie de quietude e paz no modo como se sentava. Algo confortante que só as pessoas em paz conseguem passar. Sentia também um pouco de tristeza e timidez no seu jeito de olhar.
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